Jesus é Miguel? Analisando "textos-prova"
Que a paz de nosso Senhor Jesus esteja com todos! Hoje abordarei um tema que, para mim, não possui grande relevância prática para a fé, mas que, diante dos exageros e afirmações infundadas que se popularizaram, merece uma análise cuidadosa: a ideia de que Jesus seria o arcanjo Miguel. Assim, examinarei os principais textos usados como "prova" por aqueles que defendem essa posição e verificarei, com atenção ao contexto e ao sentido real das passagens, se eles de fato afirmam o que os miguelianos alegam.
Antes de qualquer discussão, é verdade que muitos protestantes já defenderam a ideia de que Jesus seria o arcanjo Miguel (assim como muitos creem que o Messias era o Anjo do Senhor no Antigo Testamento). Até aí, trata-se apenas de uma hipótese teológica que pode ser debatida. O problema surge quando uma hipótese é elevada ao status de verdade absoluta. Nas redes sociais, por exemplo, já vi uma pessoa cumprimentando com um "A paz de Miguel". Além de soar estranho, isso acabaria promovendo uma espécie de veneração a um anjo, algo que não difere muito da prática católica de atribuir devoção exagerada a santos.
Voz de arcanjo?
"Porque o mesmo Senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro" (1Tessalonicenses 4:16 ARC)
Faço questão de começar por esse argumento justamente por considerá-lo o mais absurdo. É realmente difícil acreditar que haja pessoas (inclusive com mestrado em teologia (que utilizam 1 Tessalonicenses 4:16 para tentar afirmar que Jesus é o arcanjo Miguel. Mas é a realidade). Para esses intérpretes, quando Cristo retornar, Ele supostamente virá com uma voz "diferente", isto é, com voz de arcanjo. E tudo isso baseado apenas na preposição "com" presente no texto.
Para quem analisa o texto com seriedade, percebe rapidamente que o "com" se aplica igualmente ao alarido, à voz do arcanjo e à trombeta de Deus (1 Tessalonicenses 4:16). E é justamente observando a questão da trombeta que tudo começa a se encaixar. Antes da volta de Jesus, sabemos que uma trombeta é tocada (exatamente como afirma 1 Coríntios 15:52). E como a maioria dos que creem no Deus-Jesus-Miguel adota o pós-tribulacionismo, eles mesmos afirmam que a trombeta de 1 Tessalonicenses 4:16 é a mesma das trombetas do Apocalipse, as quais são tocadas por um dos sete anjos (Apocalipse 8:2; 8:6; 10:7; 11:15), não por Jesus. A questão que fica é: se com a trombeta de Deus não é necessariamente portando o objeto, por que com voz de arcanjo seria? Ou seja, o que Paulo descreve em 1 Tessalonicenses 4:16 não é que Cristo virá com uma "voz diferente" ou com "voz de arcanjo", mas que o toque da trombeta, o alarido e a voz do arcanjo acompanham a manifestação gloriosa do Senhor.
Arcanjo não é anjo?
"Mas o arcanjo Miguel, quando contendia com o diabo e disputava a respeito do corpo de Moisés, não ousou pronunciar juízo de maldição contra ele; mas disse: O Senhor te repreenda." (Judas 1:9 ARC)
É verdade que o termo "anjo" nem sempre se refere a um ser celestial. Pela própria etimologia, a palavra descreve simplesmente um mensageiro, de modo que homens também podem ser chamados de "anjos". Isso fica claro quando observamos a referência a João Batista em Malaquias 3:1 e em Mateus 11:10, onde ele é descrito como o mensageiro enviado diante do Senhor.
Quando um trinitariano diz que Jesus é o Anjo do Senhor, isso não significa que Ele seja um anjo criado, como Gabriel. O que se quer dizer é que, no Antigo Testamento, Deus às vezes aparecia ao Seu povo assumindo a forma ou a função de um mensageiro, e essas manifestações são entendidas como aparições de Cristo antes da encarnação. E isso também é debatível.
Mas, quando o assunto é Miguel, aí complica tudo. Por exemplo, Miguel não pode ser entendido como uma teofania, já que ele nunca se manifestou diretamente a homens. Assim, o que sobra para os miguelianos é afirmar que "arcanjo" não é um anjo superior, mas apenas um chefe dos anjos. Um exemplo cômico disso é o termo "arquiteto": nessa visão esdrúxula, o arquiteto seria um cargo distinto dos outros construtores da obra.
Aqui entramos em uma questão mais subjetiva. Embora a profissão de arquiteto seja muito antiga (e, no passado, esses profissionais acumulassem tarefas mais amplas do que hoje ), permanece uma questão de perspectiva decidir se quem participa da idealização também pode ser chamado de "construtor". Afinal, o arquiteto é justamente o responsável por conceber o projeto, planejar o uso do espaço, definir estética e funcionalidade, além de coordenar e supervisionar a execução da obra. Assim, ele participa da construção de maneira essencial, ainda que não realize fisicamente o trabalho dos operários. Entretanto, considerar essa participação intelectual e técnica como parte da "construção" depende do olhar de cada pessoa.
O fato é que o termo grego "archi-" também é aplicado a seres superiores dentro da mesma categoria, e não a um ser de natureza diferente. Por exemplo, o termo grego para sumo sacerdote é "archiereus" (ἀρχιερεύς), e ele continua sendo um sacerdote (hiereus). Isso pode ser visto em Mateus 26:3, Mateus 26:51, e João 18:13, onde "archiereus" aparece claramente. Da mesma forma, o termo usado para "chefe dos publicanos" é "architelōnēs" (ἀρχιτελώνης), e ele continua sendo um publicano (telōnēs), como aparece em Lucas 19:2.
Outro problema grave ao citar as palavras de Jesus, nesse contexto, é ignorar que Ele frequentemente faz referência a elementos da cultura e da literatura judaica presentes em seu ambiente imediato. Por exemplo, o mesmo autor, Judas, cita explicitamente 1 Enoque 1:9 em Judas 1:14–15, mostrando que tinha essa obra em mente e que seus leitores estavam familiarizados com ela.
Além disso, no próprio livro de 1 Enoque (capítulos 20 e 40), Miguel é apresentado como um entre sete anjos principais (às vezes chamados de "anjos da presença" ou "arcanjos"), e não como uma figura única ou exclusiva.
Essa simples observação já evidencia que recorrer ao texto de Judas para afirmar que Miguel seria uma só entidade celestial singular, ou mesmo identificá-lo com Cristo, é uma conclusão precipitada e desconectada do pano de fundo judaico que moldava a compreensão dos primeiros leitores.
"O Senhor te repreenda"
"Deus me mostrou o sumo sacerdote Josué, o qual estava diante do Anjo do Senhor, e Satanás estava à mão direita dele, para se lhe opor. Mas o SENHOR disse a Satanás: O SENHOR te repreende, ó Satanás; sim, o SENHOR, que escolheu a Jerusalém, te repreende; não é este um tição tirado do fogo?" (Zacarias 3:1-2 ARA)
"Contudo, o arcanjo Miguel, quando contendia com o diabo e disputava a respeito do corpo de Moisés, não se atreveu a proferir juízo infamatório contra ele; pelo contrário, disse: O Senhor te repreenda!" (Judas 1:9 ARA)
Judas apresenta um texto bastante singular. Muitos que não creem que Jesus seja o arcanjo Miguel costumam relacioná-lo com Mateus 4, destacando que, enquanto Jesus exerce autoridade direta ao dizer "eu te repreendo", Miguel, em Judas 1:9, apela para uma autoridade superior ao declarar: "O Senhor te repreenda".
Por outro lado, os defensores da identificação entre Jesus e Miguel vinculam essa passagem a Zacarias 3:2, que declara: "O SENHOR disse a Satanás: O SENHOR te repreenda''. Para essa interpretação, Miguel seria o "anjo do SENHOR" mencionado em Zacarias 3:1, e, por consequência, o próprio SENHOR que fala no versículo 2. O pensamento, de forma simplificada, seria: "se ambos dizem 'O Senhor te repreenda', então ambos seriam a mesma pessoa".
Mas este pensamento praticamente se desmorona quando lemos o texto correlato de Judas, que se encontra na segunda carta se Pedro:
"ao passo que anjos, embora maiores em força e poder, não proferem contra elas juízo infamante na presença do Senhor." (2 Pedro 2:11 ARA)
O texto de Pedro praticamente desmonta também qualquer tentativa de usar o prefixo 'archi' para excluir o grande príncipe da categoria dos anjos"; aliás, se ambos os textos são correlatos, por que o tipo de anjo descrito por Judas seria diferente do tipo mostrado por Pedro, não é mesmo?
O texto de Zacarias, embora possa soar estranho à primeira vista, não causa estranhamento para quem está habituado à leitura do Antigo Testamento. É comum que Deus fale de si mesmo na terceira pessoa. Veja, por exemplo, o que ocorre em Êxodo 20:7, onde Deus fala diretamente, mas ainda assim se refere a si mesmo como "o SENHOR":
"Não tomarás o nome do SENHOR teu Deus em vão; porque o SENHOR não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão." ( Êxodo 20:7)
E sabemos que o discurso de Êxodo 20 é proferido pelo próprio Deus, pois o capítulo se inicia afirmando que "Deus falou todas estas palavras" (Êxodo 20:1). E esse mesmo padrão aparece claramente em Zacarias 3:2. Percebe-se, portanto, que o próprio Deus fala, mas se refere a si mesmo na terceira pessoa, algo frequente no Antigo Testamento.
E pra finalizar de vez, uma estrutura similar é encontrada mais à frente, no próprio livro de Zacarias:
"Novamente, me veio a palavra do SENHOR, dizendo: As mãos de Zorobabel lançaram os fundamentos desta casa, elas mesmas a acabarão, para que saibais que o SENHOR dos Exércitos é quem me enviou a vós outros." (Zacarias 4:8-9 ARA)
Seus anjos
"Houve peleja no céu. Miguel e os seus anjos pelejaram contra o dragão. Também pelejaram o dragão e seus anjos" (Apocalipse 12:7 ARA)
Outra tentativa de sustentar que Jesus seria Miguel consiste simplesmente em conectar as passagens que mencionam o Filho do homem e seus anjos com aquelas que falam de Miguel e seus anjos em Apocalipse 12:7. Porém, esse tipo de argumento segue a mesma lógica falha usada pelos unicistas, que procuram provar que Jesus é o Pai apenas porque ambos são chamados de Deus. Assim como no caso unicista, a mera semelhança das expressões não estabelece identidade entre as pessoas envolvidas. Ora, se Miguel é um arcanjo, é evidente que possui anjos sob seu comando. Assim, a expressão "seus anjos" aplicada a Miguel não sugere que ele seja Jesus, mas apenas confirma que ele ocupa uma posição hierarquicamente superior entre os anjos.
Um bom exemplo que ilustra esse uso da linguagem aparece em 1 Samuel 18:27, onde a expressão "seus homens" (referindo-se a Davi) simplesmente indica que ele possuía subordinados, e isso não significa que Davi fosse o rei de Israel naquele momento. Logo, dizer "seus anjos" para Miguel apenas revela sua função de liderança angelical, não sua identidade como o Filho de Deus.

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