O conceito de céu e inferno em Isaías


A paz do Senhor! Hoje trarei um assunto de grande importância: a visão bíblica do céu e do inferno. Farei uma análise de como o livro de Isaías aborda essas questões, considerando os textos em sua literalidade e observando como eles são aplicados e desenvolvidos no Novo Testamento. Veremos o panorama das passagens envolvidas e acompanharemos como a revelação divina vai gradualmente aprofundando o entendimento dessas realidades ao longo das Escrituras.

Geena de fogo x nova terra

O conceito de Geena, ou Vale dos Filhos de Hinom, tem origem direta em Isaías 30:33, onde se lê:

"Porque Tofete já está preparada desde muito; está preparada para o rei; profundamente a fez e a preparou com muita lenha; o assopro do Senhor, como uma torrente de enxofre, a acenderá." (Isaías 30:33)

Além disso, o termo Tofete, associado ao mesmo local, é mencionado em Jeremias como um lugar fora de Jerusalém, marcado por práticas idólatras e sacrifícios humanos, onde havia cadáveres em chamas:

"Edificaram os altos de Tofete, no vale de Ben-Hinom, para queimarem em sacrifício os seus filhos e as suas filhas, algo que nunca ordenei, nem me passou pela mente." Jeremias 7:31 NAA

'Geena', termo usado por Jesus em diversas passagens (como Mt 5:22, 29-30; Mc 9:43-47), tem origem no 'Vale dos Filhos de Hinom' (hebraico: Ge Hinnom), uma área ao sul de Jerusalém. Esse vale foi tristemente famoso por práticas pagãs, incluindo o sacrifício de crianças ao deus Moloque, como denunciado em textos como 2 Crônicas 28:3; 33:6 e Jeremias 7:31-32. Com o tempo, o lugar passou a simbolizar um juízo divino severo, sendo posteriormente associado ao fogo e à condenação final. Com esse pano de fundo, torna-se evidente o motivo pelo qual Isaías 66:23-24 utiliza a imagem dos cadáveres fora de de Jerusalém em sua ilustração:

"Também deles tomarei a alguns para sacerdotes e para levitas, diz o Senhor. Porque, como os novos céus e a nova terra que hei de fazer estarão diante da minha face, diz o Senhor, assim também a vossa descendência e o vosso nome permanecerão. E será que, de uma festa da lua nova a outra, e de um sábado a outro, virá toda carne a adorar perante mim, diz o Senhor. E sairão, e verão os cadáveres dos homens que prevaricaram contra mim; porque o seu verme nunca morrerá, nem o seu fogo se apagará; e eles serão um horror para toda a carne." Isaías 66:22-24 

Na nova terra descrita por Isaías ( Is 66:22), vemos a presença do Israel étnico, com sacerdotes e levitas (Is 66:21), e uma adoração de sábado em sábado e de mês em mês (Is 66:23), ilustrando algo contínuo. Ao saírem dessa adoração, contemplam os cadáveres dos ímpios em um fogo que não se apaga (Is 66:24), indicando que o horror será tão ininterrupto quanto a adoração.

[17] Pois eis que eu crio novos céus e nova terra; e não haverá lembrança das coisas passadas, jamais haverá memória delas. [18] Mas vós folgareis e exultareis perpetuamente no que eu crio; porque eis que crio para Jerusalém alegria e para o seu povo, regozijo. [19] E exultarei por causa de Jerusalém e me alegrarei no meu povo, e nunca mais se ouvirá nela nem voz de choro nem de clamor. [20] Não haverá mais nela criança para viver poucos dias, nem velho que não cumpra os seus; porque morrer aos cem anos é morrer ainda jovem, e quem pecar só aos cem anos será amaldiçoado. [21] Eles edificarão casas e nelas habitarão; plantarão vinhas e comerão o seu fruto. [22] Não edificarão para que outros habitem; não plantarão para que outros comam; porque a longevidade do meu povo será como a da árvore, e os meus eleitos desfrutarão de todo as obras das suas próprias mãos. [23] Não trabalharão debalde, nem terão filhos para a calamidade, porque são a posteridade bendita do Senhor, e os seus filhos estarão com eles. [24] E será que, antes que clamem, eu responderei; estando eles ainda falando, eu os ouvirei. [25] O lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha como o boi; pó será a comida da serpente. Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte, diz o Senhor. Isaías 65:17-25 ARA

Reconheço, sem dúvida, a possibilidade de um cumprimento parcial dessas profecias durante o milênio, uma vez que muitas delas possuem uma aplicação dupla. Um exemplo claro disso é a promessa de Jesus abrir os olhos dos cegos (Is 42:7), que se concretiza tanto de forma física, por meio dos milagres de cura realizados em Seu ministério terreno (Lc 7:22), quanto de maneira espiritual, no sentido de trazer luz e entendimento aos corações e mentes das pessoas, o sentido primário de Isaías 28:19.

 Porém, vemos, uma certa diferença entre a profecia e a aplicação feita dela. O novo céu e nova terra de Isaías são judaicos, com pessoas tendo longevidade como a das árvores, mas ainda com a possibilidade de morrer (Is 65:20,22). Na aplicação, essa vida longa se torna uma metáfora para a vida eterna, onde a Igreja, composta por judeus e gentios, toma o protagonismo (Ap 21:1-4). Da mesma forma, assim como a longevidade de árvore, o horror que o povo vê mês após mês e o fogo que não se apaga (Isaías 66:23-24) se transformam no horror eterno (Dn 12:2) e no fogo eterno (Mt 18:8-9).

Essa diferença entre a profecia e sua aplicação é muito comum. Por exemplo, em Isaías 60, onde se diz: "Nunca mais te servirá o sol para luz de dia, nem com o seu resplendor a lua te alumiará, mas o Senhor será a tua luz perpétua" (Isaías 60:19), vemos a mesma linguagem usada em Apocalipse, onde a nova Jerusalém "não necessita do sol nem da lua para que nela resplandeçam" (Ap 21:23). Contudo, a Jerusalém descrita por Isaías é construída por estrangeiros (Is 60:10), enquanto a de Apocalipse desce do céu, sendo feita por Deus e não por mãos humanas (Ap 21:2).

Deus vindo como um guerreiro feroz

"Porque eis que o Senhor virá em fogo, e os seus carros, como um torvelinho, para tornar a sua ira em furor e a sua repreensão, em chamas de fogo, porque com fogo e com a sua espada entrará o Senhor em juízo com toda a carne; e serão muitos os mortos da parte do Senhor." Isaías 66:15-16 ARA

Ao contrário do Novo Testamento, que retrata Jesus vindo sobre as nuvens, Isaías apresenta sua vinda com carruagens, fogo e espada. Essa cena de Deus vindo é retratada em vários lugares do livro. Em Isaías 33:10, o Senhor declara: "Agora me levantarei; agora me exaltarei, agora me engrandecerei." Em Isaías 29:6, Ele é descrito vindo "com trovões, terremotos, grande ruído, turbilhão, tempestade e chamas de fogo devorador", o que se repete em Isaías 66. Isaías 2:10-21 também descreve o Senhor vindo em glória, diante da qual "os homens se esconderão nas cavernas das rochas" por causa do "resplendor da sua majestade".

 Curiosamente, no Salmo 104, é dito que o Senhor "faz das nuvens o seu carro" (Sl 104:3), e a palavra do Senhor é frequentemente retratada como sua espada (Ef 6:17). Inclusive, a espada que sai da boca de Cristo em Apocalipse 19:15 lembra o que é dito em Isaías 49:2 e 11:4 na Septuaginta. E a ideia de chamas devoradoras procedendo de Deus e formando cadáveres encontra um paralelo interessante no episódio dos filhos de Arão. "Então saiu fogo de diante do Senhor e os devorou" (Lv 10:2), e logo depois "levaram-nos nas suas túnicas para fora do arraial" (Lv 10:5).

Aprofundando-se na questão dos cadáveres, assim como a ideia do carro de Deus e das nuvens, os Salmos também apresentam imagens semelhantes em relação ao assunto agora mencionado. No Salmo 31, o salmista, sentindo-se desprezado, chega a considerar-se como morto: "Estou esquecido no coração deles como morto; sou como um vaso quebrado" (Sl 31:12). O mesmo sentimento de abandono por parte de Deus é expresso no Salmo 88: "Estou contado com os que descem à cova; sou como um homem sem forças, lançado entre os mortos, dos quais já não te lembras" (Sl 88:4-5). Coincidentemente, ou não, o lago de fogo (que representa a exclusão definitiva do Reino e de Deus) é também descrito como uma forma de morte (Ap 21:8).

Isaías 33:14 fala de inferno?

"[14] Os pecadores em Sião se assombram, o tremor se apodera dos ímpios; e eles perguntam: Quem dentre nós habitará com o fogo devorador? Quem dentre nós habitará com chamas eternas? [15] O que anda em justiça e fala o que é reto; o que despreza o ganho de opressão; o que, com um gesto de mãos, recusa aceitar suborno; o que tapa os ouvidos, para não ouvir falar de homicídios, e fecha os olhos, para não ver o mal, [16] este habitará nas alturas; as fortalezas das rochas serão o seu alto refúgio, o seu pão lhe será dado, as suas águas serão certas." Isaías 33:14-16 ARA

O versículo 14 de Isaías 33 pode ser visto como uma referência direta a Deus, que em várias passagens se manifesta em fogo (Êxodo 19:18). A imagem do trono do Ancião de Dias, descrito em Daniel 7:9-10, também é cercada por chamas de fogo, reforçando a ideia de que a presença divina é associada ao fogo. A expressão "habitar com fogo consumidor" e "chamas eternas" em Isaías 33:14 está intimamente ligada à promessa de "habitar nas alturas" (v. 16), que é destinada aos justos, indicando que, para os fiéis, o fogo de Deus representa tanto Sua santidade quanto a glória eterna em Sua presença. Aliás, a glória de Deus, que é eterna (1 Pedro 5:10), é semelhante ao fogo devorador (Êxodo 24:17), por isso Deus é descrito como chamas eternas.

Em outras palavras, o fogo de Isaías 33:14 não é o inferno. Porém, em outros trechos, como Isaías 66:15-16, vemos que Deus vem em fogo. O rio de fogo em Daniel 7:9-10, que lembra bastante o lago de fogo de Apocalipse 20:14-15, também procede do trono de Deus. Curiosamente, Daniel traz os mesmos elementos de Apocalipse 20, como Deus assentado no trono, o julgamento e os livros abertos. Assim, o fogo de Isaías 66:24 não se apaga porque vem de uma fonte eterna, o próprio Deus.

Portanto, o retrato profético de Isaías revela a restauração do Israel étnico, com levitas desempenhando seu papel de sacerdotes e a longevidade de árvore, como um símbolo de estabilidade e continuidade. Durante essa era, o culto será celebrado semanalmente e mensalmente, com uma adoração contínua ao Senhor, enquanto os cadáveres dos ímpios queimam sem cessar, como testemunho do juízo divino. No contexto neotestamentário, essa profecia é aplicada de maneira transformada na nova Jerusalém, onde, embora o Israel étnico perca seu protagonismo, a adoração se estende a todos os povos, judeus e gentios, como a Igreja. O fogo eterno, agora entendido como a separação final entre os salvos e os condenados, reflete a realidade de um juízo que, embora literal no Antigo Testamento, ganha novas dimensões na nova aliança, com a promessa de um novo céu e uma nova terra, onde a justiça e a paz de Deus prevalecerão sem fim.


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