Os espíritos em prisão
O texto sobre os "espíritos em prisão", encontrado em 1 Pedro 3:19-20, é um dos mais intrigantes e desafiadores do Novo Testamento. Sua interpretação envolve questões complexas que vão desde a identidade desses espíritos até o significado da pregação de Cristo a eles. Por séculos, estudiosos têm debatido o contexto e o propósito dessa passagem, oferecendo diferentes perspectivas baseadas na teologia, na história e na análise linguística. Essa variedade de entendimentos torna o estudo desse tema um exercício que exige cuidado, paciência e atenção ao contexto bíblico mais amplo. Este estudo será, portanto, mais uma de várias tentativas de descascar esse "abacaxi teológico".
1Pedro 3:18-20
[18] Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado pelo Espírito, [19] no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, [20] os quais, noutro tempo, foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual poucos, a saber, oito pessoas, foram salvos, através da água,
1Pedro 4:5-6
[5] os quais hão de prestar contas àquele que é competente para julgar vivos e mortos; [6] pois, para este fim, foi o evangelho pregado também a mortos, para que, mesmo julgados na carne segundo os homens, vivam pelo Espírito segundo Deus.
Além da evidente semelhança quanto à pregação, há outros elementos em comum entre os dois textos. Tanto em 1 Pedro 3, onde se menciona que Cristo foi "morto, sim, na carne, mas vivificado pelo Espírito" (v. 18), quanto em 1 Pedro 4:1-6, encontramos referências à morte na carne e à vivificação pelo Espírito. Esses conceitos, atribuídos a Cristo no capítulo 3, são relacionados aos mortos no capítulo 4, sugerindo uma conexão temática muito forte.
Partindo para a identificação, algumas pessoas acreditam que os "espíritos em prisão", mencionados em 1 Pedro 3:19, sejam anjos caídos que estão em prisões, e que Cristo pregou a eles para declarar sua vitória sobre o pecado e a morte. No entanto, ao comparar os dois textos de 1 Pedro 3 e 4, essa interpretação parece menos provável. Ambos os capítulos trazem temas relacionados, como à morte na carne e à vivificação pelo Espírito, como já foi exposto anteriormente. Além disso, não há registro bíblico que sustente uma pregação de Cristo especificamente aos espíritos caídos. Isso sugere que a pregação mencionada está mais ligada à salvação e ao juízo de pessoas do que à proclamação diante de seres caídos.
Ademais, a Bíblia deixa claro que esses anjos estão presos em uma condição deplorável, aguardando apenas o juízo, ou seja, uma pena ainda mais severa (2 Pedro 2:4; Judas 1:6). Assim, surge a questão: qual seria a necessidade de Cristo descer para proclamar vitória a um grupo já condenado?
Para aqueles que defendem essa teoria, a resposta seria que Cristo proclamou a vitória sobre a morte. No entanto, como sabemos, os que interpretam a passagem como uma pregação aos anjos em prisão acreditam que esses anjos são os "filhos de Deus" mencionados em Gênesis 6, que coabitaram com mulheres nos dias de Noé, ou seja, séculos após a queda de Adão. Em outras palavras, mesmo dentro dessa teoria, a explicação não se sustenta, pois esses anjos não teriam qualquer envolvimento direto com a queda de Adão, que trouxe a morte.
Alguns dizem que, em 1 Pedro 4:6, as pessoas receberam a pregação enquanto vivas, e agora, no presente, estão mortas. Essa interpretação é realmente criativa, mas frágil. Todos estão mortos, no presente, porque até agora ninguém ressuscitou. Sobre I Pedro 4, o comentário de Ellicott é suficiente:
"Esta versão é enganosa e parece de fato ser um daqueles raros casos em que o original foi ampliado pelos tradutores para fins doutrinários. O grego é simplesmente: 'pois, para esse fim, o evangelho também foi pregado aos mortos', ou, ainda mais literalmente, 'também aos mortos'. Ninguém com uma mente despreocupada poderia duvidar, tomando esta cláusula por si só, que as pessoas a quem esta pregação foi feita estavam mortas no momento da pregação. Se este for o caso, então, obviamente, São Pedro está nos levando de volta ao seu ensino de 1 Pedro 3:19 , e está explicando melhor o propósito da descida de Cristo ao inferno."
Alguns afirmam que os "mortos" em 1 Pedro 4:6 se referem a mortos espirituais, semelhante à referência em Efésios 2:1. No entanto, antes da pregação, todos estavam mortos espiritualmente, e o texto menciona "também aos mortos", o que indica que havia pessoas que não estavam mortas, ou seja, que ainda estavam vivas. Além disso, o versículo 6 serve como uma conclusão do versículo 5, sugerindo que os "mortos" devem ser entendidos no mesmo sentido do versículo anterior, onde o foco está em todos aqueles que, sejam vivos ou mortos, precisam prestar contas a Deus. Assim, a pregação aos mortos não se limita aos espiritualmente mortos, mas inclui também aqueles que já haviam falecido fisicamente.
Mas alguém poderia sugerir: Então há possibilidade de salvação após a morte? A ideia de salvação após a morte é frequentemente debatida, mas a própria Bíblia descarta essa possibilidade. Em Hebreus 9:27, lemos: "E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois disto, o juízo." Este versículo deixa claro que, após a morte, o destino de cada pessoa já é definido, com o juízo vindo imediatamente após a morte. Isso implica que não há oportunidade para salvação após a morte, contradizendo qualquer noção de uma segunda chance para aqueles que faleceram sem Cristo. A salvação é algo que ocorre durante a vida, enquanto ainda há tempo para responder à mensagem do evangelho.
Uma das principais metas da pregação é o arrependimento, algo que é enfatizado em várias passagens bíblicas. O exemplo do rico em Lucas 16:19-31 é claro: ele, já no Sheol, estava super-arrependido, acreditando em Moisés e nos profetas, que testificam de Jesus, mas, infelizmente, já era tarde demais. Todos que se encontram em uma situação semelhante à do rico, no Sheol, certamente aceitariam a pregação de Jesus para sair daquela condição, pois ninguém deseja permanecer no tormento. No entanto, o ensino bíblico é consistente ao mostrar que, após a morte, não há mais oportunidade para arrependimento ou salvação. Além disso, uma pregação salvífica vinda do Sheol anularia claramente o ensino de Daniel 12:2, que fala de um juízo final no qual alguns irão para a vergonha e horror eternos, enquanto outros serão resgatados para a vida eterna. A ideia de que as almas no Sheol poderiam receber uma segunda chance de salvação contradiz a natureza do juízo eterno, estabelecido por Deus, e subverte o propósito do evangelho, que deve ser pregado enquanto há vida.
O que Jesus teria pregado no Sheol? A pregação de Jesus no Sheol, conforme podemos observar, não se resume apenas ao arrependimento, mas inclui a proclamada chegada do "ano aceitável do Senhor" (Isaías 61:2, Lucas 4:19) e a iminente realização do "dia da vingança do nosso Deus" (Isaías 61:2, Lucas 4:19). Esse anúncio é mais do que um simples convite ao arrependimento; ele também declara a proximidade do juízo final. Quando olhamos para as almas debaixo do altar, em Apocalipse 6:9-11, vemos que é dito a elas para esperarem e aguardarem a ressurreição, quando comparamos com outros textos (Apocalipse 14:13 e Apocalipse 20:4,5). Isso implica que, após a morte, onde arrependimento não é mais opção, a única esperança restante é a ressurreição, seja para a salvação ou para a condenação. A ressurreição, portanto, faz parte do evangelho, pois é através dela que se estabelece o cumprimento das promessas de Deus, levando tanto os justos à vida eterna quanto os injustos ao juízo eterno. Jesus teria pregado aos mortos, portanto, a ressurreição.
Além disso, a morte e o Sheol (ou Hades, no grego), de acordo com as Escrituras, são realmente uma prisão da qual só Cristo tem o poder de nos libertar. Apocalipse 1:18 revela a autoridade de Cristo sobre a morte e o Hades, afirmando que Ele detém as chaves desses reinos sombrios. Ao declarar "estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos", Jesus não só afirma sua vitória sobre a morte, mas também sua capacidade de resgatar aqueles que estão cativos nela. O Sheol, que na Bíblia é entendido como o lugar dos mortos, é uma condição de separação e aprisionamento, mas a obra redentora de Cristo, através de sua morte e ressurreição, é a única que pode romper esse ciclo, trazendo vida eterna e libertação aos que creem nele. Assim, Cristo, como aquele que possui as chaves da morte e do inferno, é a única fonte de salvação, capaz de nos tirar da prisão da morte e nos conduzir à vida.
Em resumo, a interpretação de 1 Pedro 3:19-20 e 1 Pedro 4:5-6, quando vista em conformidade com todo o texto sagrado, mostra que a pregação de Cristo aos "espíritos em prisão" não deve ser entendida como uma chance de salvação após a morte. A Bíblia deixa claro que, depois da morte, o destino de cada pessoa já está decidido e o juízo acontece logo em seguida, como diz Hebreus 9:27. Portanto, ao descer ao Hades, Cristo não ofereceu uma segunda chance de arrependimento, mas proclamou sua vitória, assegurando a ressurreição de todos os que ali estavam, seja para a vida eterna, seja para a condenação. Isso preserva a doutrina cristã de que a salvação é concedida enquanto estamos vivos e reafirma a esperança dos crentes na libertação da morte por meio da obra redentora de Cristo.
Referência:
ELLICOTT, Charles John. 1 Peter 4. Disponível em: https://biblehub.com/commentaries/ellicott/1_peter/4.htm. Acesso em: 20 dez. 2024.
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