Destruídos ou perdidos?
A paz do Senhor a todos! Nesta publicação, estarei abordando a "treta" teológica em cima dos termos gregos ἀπόλλυμι (apollumi) e ἀπώλεια (apoleia). Isso porque essas palavras podem trazer a ideia de destruir quanto de perder. Tendo isso em mente, é inegável que, quando utilizadas em textos que falam de juízo final sobre os ímpios, o viés teológico sempre falará mais alto. Quem é aniquilacionista, por exemplo, sempre fará, no "piloto automático", questão de traduzir por "destruir"; já se tratando de quem não é, uma tradução mais "suave" sempre será mais adequada. Quem estaria certo?
O renomado professor de grego Bill Mounce traz uma explicação significativa para a discussão:
"Apollumi tem uma gama de significados, que vão desde a perda (como a mulher que perdeu uma de suas dez moedas, Lucas 15:8) até a morte (como morrer pela espada, Mateus 26:52)".
Na própria publicação que pode ser vista AQUI, o autor declara que o contexto determinará o significado que a palavra quer transmitir, sendo um termo de múltiplos significados, como "perder", "destruir", "tornar nulo" e outros que você mesmo pode conferir no link que deixei acima.
Duas abordagens do juízo
E antes de analisar a passagem em textos que abordam o fim, é bom destacar que há praticamente duas principais formas de enxergar os textos do juízo. Primeiro, aqueles que descrevem o julgamento final, em que os justos herdam o reino ou nova criação, enquanto os ímpios são lançados fora, em um lugar de fogo, onde choram, rangem os dentes e são atormentados para sempre. Aqui o tema central seria SEPARAÇÃO. O segundo caso se refere aos versículos que usam o termo discutido na publicação, que como Bill Mounce deixou claro, tem uma ampla "gama de significados".
O definição dos termos
Agora entrando ao fundo no estudo da palavra, farei de questão de mostrar uma passagem para tirarmos nossas próprias conclusões. Vejamos:
"Quando eu estava com eles, guardava-os no teu nome, que me deste, e protegi-os, e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da ἀπώλεια (apoleia), para que se cumprisse a Escritura". João 17:12 ARA
Seguindo o contexto, como sugere Mounce, o melhor entendimento é que a ideia traga é de "perdição". O termo "apoleia" que é da mesma raiz de "apollumi" está ligado a "perdeu" que também vem de "apollumi". Ou seja, Cristo guardou seus discípulos, para que nenhum se perdesse, exceto um. Esse "exceto" também favorece "perdição" no lugar de destruição, já que liga o sentido da palavra posterior (perdição) à anterior (perdeu).
Por outro lado, eu, mesmo sendo um ferrenho crente no castigo eterno dos ímpios, admito que o termo perder pode conotar morrer, como parece mostrar o próprio capítulo 18 de João:
"Jesus, de novo, perguntou-lhes: A quem buscais? Eles responderam: A Jesus, o Nazareno. Disse-lhes Jesus: Já vos declarei que sou eu; se é a mim, pois, que buscais, deixai ir estes, para se cumprirem as palavras que ele dissera: Não perdi (apollumi) nenhum dos que me deste". João 18:7-9 TB
Aqui o significado é claramente perder por remontar ao texto de João 17:12. Obviamente a ideia expressa por João se trata da preservação da vida dos apóstolos. É claro que essa perdição não se restringe simplesmente a perda da vida presente, mas também ao juízo, mas João parece fazer uma aplicação dupla das palavras de Jesus. O fato é que perder também conota morrer.
Já outros trechos são claramente entendidos como morrer mesmo. Um caso didático seria o texto de João abaixo:
"Eu lhes dou a vida eterna, e elas nunca morrerão (apollumi). Ninguém pode arrebatá-las de mim". João 10:28 Tradução de Boas Novas
Um caso que parece ter consistência no significado é o infinitivo aoristo ativo "ἀπολέσαι" (apolesai). Ele aparece pelo menos oito vezes no Novo Testamento, e em várias dessas ocorrências, o verbo transmite claramente a ideia de "matar" ou "destruir". Em Mateus 2:13, Herodes busca matar (apolesai) o menino Jesus, evidenciando seu intento de eliminar a vida. Em Marcos 1:24 e Lucas 4:34, os demônios temem ser destruídos (apolesai) por Jesus, embora o contexto possa levantar dúvidas sobre o significado exato. Em Lucas 6:9, Jesus questiona se é lícito salvar ou destruir (apolesai) uma vida, e em Lucas 9:56, Ele declara que não veio para destruir (apolesai) as almas, mas para salvá-las. Em Lucas 19:47, a narrativa descreve os líderes religiosos tentando matar (apolesai) Jesus, e em Tiago 4:12, destaca-se que somente Deus tem o poder de salvar e destruir (apolesai).
Diante disso, com exceção dos casos envolvendo os demônios (Marcos 1:24; Lucas 4:34) e Mateus 10:28, que claramente estão em um contexto escatológico, pode-se afirmar que todos os outros exemplos indicam claramente a ideia de tirar a vida (Mateus 2:13; Lucas 6:9; Lucas 9:56; Lucas 19:47; Tiago 4:12). Considerando a consistência do uso verbal em diferentes passagens, podemos inferir que, em Mateus 10:28, o verbo apolesai se refere a uma destruição no sentido de tirar a vida, especialmente a destruição do corpo e da alma no inferno, um ato que somente Deus tem o poder de realizar.
Ainda sobre Mateus 10:28, além do uso frequente no infinitivo no sentido de tirar a vida, seria totalmente coerente seguirmos a progressão no entendimento: matar corpo, matar alma e (logicamente) matar corpo e alma no inferno. "Apolesai" e "apokteinō" (que é usado anteriormente para a morte do corpo e da alma na parte a do versículo) teriam, portanto o mesmo significado.
O entendimento de perdição
Agora, para podermos esclarecer definitivamente a questão, vamos analisar o conceito de perdição:
"Porque o Filho do Homem veio salvar o que se tinha perdido." Mateus 18:11 (ARC):
"E a vontade do Pai, que me enviou, é esta: que nenhum de todos aqueles que me deu se perca, mas que o ressuscite no último Dia." João 6:39 (ARC):
O verbo grego para "perder" nesses versículos é apollumi. Curiosamente, a ideia de estar "perdido" engloba tanto o conceito de estar espiritualmente distante de Deus, como em Mateus, quanto a exclusão definitiva do reino, como em João. Em Mateus, o "perdido" se refere à condição de afastamento, que Jesus veio salvar; enquanto em João, o "perder-se" implica a perda irreversível, indicando uma exclusão final do reino de Deus. Assim, o verbo apollumi é utilizado para expressar diferentes aspectos da salvação e da condenação.
Os vários entendimentos de morte
"Mas era justo alegrarmo-nos e regozijarmo-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; tinha-se perdido (apollumi) e foi achado." Lucas 15:32 (ARC)
"Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, [5] estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos)." Efésios 2:4-5 (ARC)
Curiosamente, o homem distante de Deus não apenas se encontra perdido, mas também espiritualmente morto, como ilustrado tanto na parábola do filho pródigo quanto na carta aos Efésios. Em ambas as passagens, a morte espiritual é associada à separação de Deus, e a restauração vem por meio da graça e do perdão, trazendo vida e reconciliação.
Da mesma forma como perdição pode ser aplicada tanto ao estado atual quanto ao final, o destino do ímpio, ao mesmo tempo que é um afastamento do reino e de Cristo também é denominado de morte. Um exemplo claro é a própria besta, que vai à "apoleia" (Ap 17:8). Na realidade, o próprio Anticristo, assim como Judas, é "filho da apoleia" (2 Tessalonicenses 2:3). E essa perdição ou destruição da besta é o sofrimento sem fim no lago de fogo.
"O diabo, que os enganava, foi lançado no lago de fogo e enxofre, onde estão a besta e o falso profeta; e de dia e de noite serão atormentados para todo o sempre." Apocalipse 20:10
O caso dos seres humanos e do demônio são fatos que merecem relevância para o estudo. Assim como textos que falam claramente de sua destruição ou morte, como os acordados à cima, há textos em mencionam o seu tormento (Mateus 8:30 e Apocalipse 14:9,10). A situação dos seres humanos é mais interessante ainda, pois assim como Mateus 10:28 poderia sugerir dois tipos de morte, o próprio lago de fogo é considerado pela Bíblia a segunda, conforme Apocalipse 2:11, 20:14 e 21:8, sendo estes textos a explicação daquele.
"Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas. O vencedor não sofrerá dano da segunda morte." Apocalipse 2:11
"Quanto, porém, aos covardes, aos incrédulos, aos abomináveis, aos homicidas, aos fornicadores, aos feiticeiros, aos idólatras e a todos os mentirosos, a sua parte será no lago que arde com fogo e enxofre, que é a segunda morte." Apocalipse 21:8
A renomada Exposição de Gil de toda a Bíblia, por exemplo,comenta sobre Apocalipse 20:14 vinculando com o texto de Mateus 10:28:
Se você pensa que este conceito é algo recente, saiba que Tertuliano (c. 155–220 d.C.), um dos pais da Igreja, já defendia exatamente essa mesma ideia. No capítulo 35 de Ressurreição da Carne, Tertuliano comenta sobre Mateus 10:28 e refuta a ideia de que a destruição da alma e do corpo no inferno signifique aniquilação. Ele argumenta:
"Se, portanto, alguém supuser que a destruição da alma e da carne no inferno equivale a uma aniquilação final das duas substâncias, e não a um tratamento penal (como se fossem consumidas e não punidas), que se lembre de que o fogo do inferno é eterno, expressamente anunciado como uma pena eterna. E então reconheça que é justamente essa circunstância que torna essa morte sem fim mais temível do que um assassinato meramente humano, que é apenas temporal." (De Resurrectione Carnis, 35)
Aqui, Tertuliano deixa claro que a destruição mencionada em Mateus 10:28 não significa extinção do ser, mas um estado contínuo de punição no inferno, tornando-a ainda mais severa do que a morte física. Ou seja, uma segunda morte que é pior que a primeira e possível apenas a Deus.
No capítulo 34 de "A Ressurreição da Carne", Tertuliano reforça sua posição contra a aniquilação da alma, afirmando:
"Nós, no entanto, entendemos a imortalidade da alma de modo a acreditar que ela está perdida, não no sentido de destruição, mas de punição, isto é, no inferno." (De Resurrectione Carnis, 34)
Uma outra evidência de que Mateus 10:28 se refere a uma morte que só Deus pode infligir, e que a primeira morte nem se compara a ela, está no próprio capítulo 18:6. Ali, Jesus ensina que seria preferível morrer afogado no mar com uma pedra amarrada ao pescoço do que enfrentar a condenação na Geena.
Sintetizando tudo, percebemos que, com exceção do infinitivo aoristo ativo de "apollumi" -que sempre ou quase sempre traz a ideia de matar, além do contexto para determinar o significado exato da palavra em discussão como assinala o erudito Mounce, é necessário também averiguar a intenção do autor sempre considerando a visão geral do texto sagrado. Se "apollumi" pode trazer o entendimento de "perder" ou "matar", o estado do homem, SEPARADO de Deus e do reino, também é ilustrado por ambas as ideias. Ser lançado para fora na nova criação é estar perdido e até morto, mesmo que, neste último caso, haja lá consciência para chorar, ranger os dentes e ser atormentado.
Referências:
BIBLE HUB. ἀπολέσαι (apolesai). Disponível em: https://biblehub.com/greek/apolesai_622.htm. Acesso em: 10 fev. 2025.
BIBLE HUB. Revelation 20:14 Commentaries. Disponível em: https://biblehub.com/commentaries/revelation/20-14.htm. Acesso em: 23 out. 2024.
MOUNCE, Bill. Does Apollumi Mean "Destroy"? Monday with Mounce, 2 mar. 2009. Disponível em: https://www.billmounce.com/monday-with-mounce/does-apollumi-mean-%E2%80%9Cdestroy%E2%80%9D. Acesso em: 23 out. 2024.
TERTULIANO. On the Resurrection of the Flesh. Tradução de Peter Holmes. In: ROBERTS, Alexander; DONALDSON, James (Ed.). The Ante-Nicene Fathers. Buffalo: Christian Literature Publishing Co., 1885. Disponível em: https://www.newadvent.org/fathers/0316.htm. Acesso em: 10 fev. 2025.
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