O [mau] uso aniquilacionista de Isaías 66:24
Marcos 9:47-48 TB
"[47] Se o teu olho te servir de pedra de tropeço, arranca-o; melhor é entrares no reino de Deus com um só de teus olhos, do que, tendo dois, seres lançado na Geena, [48] onde o seu verme não morre e o fogo não se apaga."
A paz do Senhor! Ao usar o texto acima para explicar a existência do inferno de fogo que não se apaga, um aniquilacionista irá às pressas para outro texto da Bíblia, com o intuito de afirmar que o texto está sendo lido de uma forma errada, e que o mesmo tem um pano de fundo no Antigo Testamento, que é Isaías 66:24. Nesta publicação, veremos se procede ou não certas afirmativas que vemos no mundo virtual e no cotidiano sobre essa interpretação.
Para começarmos é sempre bom olharmos o texto que esses amigos citam para justificarem a sua crença. Vejamos:
Isaías 66:24 TB
"[24] Eles sairão e verão os cadáveres dos homens que transgrediram contra mim. Pois o seu verme não morrerá, nem o seu fogo se apagará, e eles serão uma abominação para toda a carne."
Como observado, não há porque negarmos que Marcos 9:47,48 seja uma referência ao texto acima. Afinal, trata-se da mesma fraseologia, e o texto de Isaías 66 fala do fim, do novo céu e da nova terra (v. 22). Logo, nesse ponto, um aniquilacionista já deve ter arregalado os dentes de felicidade por achar que sua crença estar em harmonia com as Escrituras. Aliás, o texto fala de cadáveres, não de pessoas vivas.
Porém, meus irmãos, sempre haverá um "porém". O contexto de Isaías 66 não se resume só a um versículo, não é mesmo? E inclusive o versículo mencionado retoma a uma ideia anterior. Observemos:
Isaías 66:15-16
"[15] Pois eis que virá o SENHOR com fogo, e os seus carros serão como o torvelinho, para retribuir a sua ira com furor e a sua repreensão, com labaredas de fogo. [16] Pois, com o fogo e com a sua espada, entrará o SENHOR em juízo com toda a carne; e serão muitos os que ficarão mortos pelo SENHOR."
Vamos destacar dois pontos. O primeiro é que este texto fala da vinda de Jesus, quando o comparados com 2 Tessalonicenses 1:7. Segundo, que os cadáveres de Isaías 66:22 são o resultado dessa vinda em fogo e espada. Ora, se pegarmos ao pé da letra, teríamos de admitir a hipótese de cadáveres indestrutíveis, pois as pessoas estariam mortas com a vinda de Jesus, e mais de mil anos depois (não esqueçamos de um milênio- Ap 20) ainda estariam queimando no novo céu e nova terra. Tenha em mente que a terra será destruída por fogo (2 Pe 3), e esses corpos mortos estariam lá e passariam para o novo mundo, se a perspectiva aniquilacionista for levada a sério.
E se você pensa que acabou, está enganado! O Senhor Jesus virá em carros ou sobre as nuvens? Isaías diz que será em carros; Jesus, que será sobre as nuvens:
Mateus 24:30 TB
"[30] Então, aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem, e todas as tribos da terra se hão de lamentar e verão o Filho do Homem vir sobre as nuvens do céu com poder e grande glória."
É claro que os carros do SENHOR em Isaías 66 não são literais. É comum, no contexto vetotestamentário as nuvens serem consideradas o carro de Deus:
Salmos 104:3 TB
"[3] és quem põe nas águas as vigas das suas câmaras, quem faz das nuvens o seu carro, quem anda sobre as asas do vento,"
Também não acredito que nem uma alma temente a Deus creia que o Senhor Jesus virá literalmente com uma espada na mão matando geral. Biblicamente, a mesma cena de Isaías 66 é também a de Apocalipse 19:
Apocalipse 19:15 TB
"[15] Da sua boca saía uma espada afiada para com ela ferir as nações; ele as regerá com uma vara de ferro e ele é o que pisa o lagar do vinho do furor da ira do Deus Todo-Poderoso".
Se é a mesma cena, obviamente também será a mesma espada. Se é a mesma espada, agora é só achar a referência de Apocalipse:
Isaías 49:1-2 ARA
"[1] Ouvi-me, terras do mar, e vós, povos de longe, escutai! O Senhor me chamou desde o meu nascimento, desde o ventre de minha mãe fez menção do meu nome; [2] fez a minha boca como uma espada aguda, na sombra da sua mão me escondeu; fez-me como uma flecha polida, e me guardou na sua aljava,"
O texto acima é uma profecia messiânica, e fala da Palavra de Jesus como sua espada. Mas colocando o "pingo no i", ninguém afirmará que o Senhor virá em carruagem e com espada matando os seus inimigos. Também duvido que um aniquilacionista acreditará que esses cadáveres durariam mais de mil anos e depois estariam na nova terra sendo expostos. Imagine como seria um culto a a Deus com milhões de corpos fedendo e queimando fora de uma cidade! Pelo menos, eu espero que não.
Agora indo para a questão dos cadáveres, nós vemos que eles estão fora de Jerusalém. Quando vamos para o Novo Testamento, a ideia é bem clara sobre o simbolismo:
Mateus 18:9 TB
"[9] Se o teu olho te serve de pedra de tropeço, arranca-o e lança-o de ti; melhor é entrares na vida com um só dos teus olhos do que, tendo dois, seres lançado na Geena de fogo."
Mateus 13:41-43 TB
"[41] O Filho do Homem enviará os seus anjos, e eles ajuntarão do seu reino tudo o que serve de pedra de tropeço e os que praticam a iniquidade [42] e lançá-los-ão na fornalha de fogo; ali, haverá o choro e o ranger de dentes. [43] Então, os justos resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai. Quem tem ouvidos [para ouvir], ouça."
"[27] Mas ele vos dirá: Não sei donde vós sois; apartai-vos de mim, vós todos os que praticais iniquidades. [28] Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes, no reino de Deus, Abraão, Isaque, Jacó e todos os profetas, mas vós, lançados fora. [29] Muitos virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul e tomarão lugares à mesa no reino de Deus."
É inegável que "Geena", "fornalha" e "fora" sejam escatologicamemte sinônimos. Como observado, a ideia básica não é de um guerreiro que vem na carruagem matando geral, mas de alguém que, após o julgamento, enquanto os justos ficam no Reino, os ímpios são lançados fora, no fogo, onde haverá choro e ranger de dentes. A cena não é de execução imediata, como está na literalidade de Isaías, mas de separação e/ou exclusão. Ou seja, as pessoas estarão para sempre em uma situação de desprezo, esquecimento e distante de Deus. E falando em separação, pessoas em situação de desprezo, à luz de várias passagens do Antigo Testamento são consideradas como mortas:
Salmos 31:11-12 ARC
"[11] Por causa de todos os meus inimigos, fui o opróbrio dos meus vizinhos e um horror para os meus conhecidos; os que me viam na rua fugiam de mim. [12] Estou esquecido no coração deles, como um morto; sou como um vaso quebrado."
Salmos 88:2-5 TB
"[2] Chegue à tua presença a minha oração inclina os teus ouvidos ao meu clamor. [3] Pois a minha alma está cheia de sofrimentos, e a minha vida se aproxima do Sheol. [4] Sou contado com os que baixam à cova, sou como homem sem socorro, [5] atirado entre os mortos; como os que, feridos de morte, jazem na sepultura, dos quais não te lembras mais, e que são desamparados das tuas mãos."
E, como sabemos, o próprio lago de fogo é considerado como morte:
Apocalipse 21:8 ARA
"Quanto, porém, aos covardes, aos incrédulos, aos abomináveis, aos assassinos, aos impuros, aos feiticeiros, aos idólatras e a todos os mentirosos, a parte que lhes cabe será no lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda morte."
O texto é claríssimo em afirmar que a segunda morte é um lugar, o lago de fogo.
Outra parte de Isaías que comprova claramente que nem sempre a aplicação corresponderá a 100% do que está na profecia é o próprio capítulo 65. Em Isaías 65, vemos a criação de um novo céu e nova terra, onde as coisas passadas não serão lembradas (Is 65:17), algo também reiterado em Apocalipse (Ap 21:1). Porém, Isaías menciona a existência de pecado e morte, ainda que em idades avançadas (Is 65:20), o que contrasta com a visão de Apocalipse, onde "a morte já não existirá" (Ap 21:4). É mais provável, portanto, que pessoas com idades avançadas, como de árvore (Is 65:22), seja apenas uma figura de linguagem para vida eterna. Entretanto, nenhuma corrente escatológica interpreta essa descrição de Isaías literalmente, pois ela não corresponde ao cenário final de Apocalipse, onde não haverá pranto, luto ou dor (Ap 21:4).
Além disso, a nova Jerusalém em Isaías 65 é centrada no contexto judaico (Is 65:18-19), enquanto em Apocalipse, ela se expande para acolher povos de todas as nações (Ap 21:24). Assim, Isaías usa, muitas das vezes, metáforas que apontam para uma era de restauração, enquanto Apocalipse descreve o estado eterno, onde não haverá mais pecado ou morte (Ap 21:3-5).
Como você pôde observar, em regra, Isaías 65 e 66 são excelentes para vermos a profecia e sua aplicação no Novo Testamento. Isaías 65:22 descreve a longevidade das pessoas como a das árvores na nova criação, uma imagem que o Novo Testamento, e até mesmo Daniel 12:2, interpretam como vida eterna. Da mesma forma, o fogo que queima de lua nova a lua nova e transforma os corpos em horror para todas as nações, descrito em Isaías 66:23-24, aponta para um fogo e um horror eternos, que ressoam com o que vemos em Daniel 12:2 e Mateus 18:8, já que o mesmo termo hebraico de Isaías para "horror" é repetido por Daniel no contexto do fim, e o texto de Mateus 18 é igualmente extraído de Isaías 66. Essas passagens demonstram como a visão profética de Isaías é ampliada nas Escrituras, revelando o destino eterno dos justos e ímpios.
O renomado comentário de Neil e Deliscth traz um excelente esclarecimento sobre o assunto que estamos abordando. Confiremos:
"Aqueles que vão em peregrinação a Jerusalém a cada lua nova e sábado, veem ali com seus próprios olhos o terrível castigo dos rebeldes. 'E eles saem e olham para os cadáveres dos homens que se rebelaram contra mim, porque seu verme não morrerá e seu fogo não se apagará, e eles se tornam uma abominação para toda a carne.'[...] É muito difícil imaginar a imagem que passou pela mente do profeta. Como é possível que toda a carne, isto é, todos os homens de todas as nações, encontrem lugar em Jerusalém e no templo? Mesmo que a cidade e o templo fossem ampliados, como Ezequiel e Zacarias predizem, a coisa em si ainda permanece inconcebível. E, novamente, como os cadáveres podem ser comidos por vermes ao mesmo tempo em que estão sendo queimados, ou como eles podem ser presas infindáveis de vermes e fogo sem desaparecer completamente da vista do homem? É perfeitamente óbvio que a coisa em si, como aqui descrita, deve parecer monstruosa e inconcebível, por mais que possamos supor que seja realizada. O profeta, pelo próprio modo de descrição adotado por ele, exclui a possibilidade de concebermos a coisa aqui apresentada como realizada em qualquer forma material neste estado atual. Ele está falando do estado futuro, mas em figuras extraídas do mundo presente. O objeto de sua predição não é outro senão a nova Jerusalém do mundo vindouro e o tormento eterno dos condenados; mas a maneira como ele o retrata nos obriga a traduzi-lo das figuras tiradas desta vida para as realidades da vida futura [...] ....Esta é apenas a distinção entre o Antigo Testamento e o Novo, que o Antigo Testamento traz a vida que está por vir ao nível desta vida, enquanto o Novo Testamento eleva esta vida ao nível da vida por vir; que o Antigo Testamento descreve tanto esta vida quanto a vida futura como uma extensão infinita desta vida, enquanto o Novo Testamento descreve como uma linha contínua em duas metades, sendo o último ponto neste estado finito o primeiro ponto do estado infinito além; que o Antigo Testamento preserva a continuidade desta vida e da vida futura, transferindo o lado externo, a forma, a aparência desta vida para a vida futura, o Novo Testamento, tornando o lado interno, a natureza, a realidade de a vida futura, o δυνάμεις με λλοντος αἰῶνος, imanente nesta vida. A nova Jerusalém de nosso profeta tem de fato um novo céu acima dela e uma nova terra abaixo dela, mas é apenas a velha Jerusalém da terra elevada à sua mais alta glória e felicidade; enquanto a nova Jerusalém do Apocalipse desce do céu e, portanto, é de natureza celestial. No primeiro habita o Israel que foi trazido de volta do cativeiro; no último, a igreja ressurreta daqueles que estão inscritos no livro da vida. E enquanto nosso profeta transfere o local em que os rebeldes são julgados para a vizinhança de Jerusalém; no Apocalipse, o lago de fogo no qual a vida dos ímpios é consumida e a morada de Deus com os homens estão separados para sempre. O vale de Hinom fora de Jerusalém tornou-se Gehenna, e isso não está mais dentro dos limites da nova Jerusalém."
Como visto, é mais um alarme falso em cima de um texto que nem eles, os aniquilacionistas, admitirão que seja totalmente literal, mas somente a parte que lhes convém, o que é esperado da heterodoxia. Afinal, este é um dos maiores erros aniquilacionistas, achar que a profecia se cumprirá da mesma forma que está lá, ignorando que às vezes, o profeta faz uso de figuras de linguagem para ilustrar o futuro. A princípio, até pensamos que se trata de uma exegese, mas depois vemos que é mais uma tentativa de passar a não na cabeça do ímpio. Certos amigos que professam a fé cristã, assim como os que vivem pecando voluntariamente todo o dia, sempre vem procurando outras alternativas "melhores" do que ter como destino um lugar de fogo que não se apaga.
Referência:
Keil, C. F., & Delitzsch, F. Commentary on the Old Testament: Isaiah 66. Bible Hub. Disponível em: https://biblehub.com/commentaries/kad/isaiah/66.htm. Acesso em: 1 de novembro de 2024.
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