As almas debaixo do altar são literais?
Apocalipse 6:9-11 TB
"[9] Quando abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que mantinham. [10] Clamaram com uma grande voz: Até quando, Senhor, santo e verdadeiro, deixas de julgar os que habitam sobre a terra e deles vingar o nosso sangue? [11] A cada um deles foi dada uma vestidura branca; e foi-lhes dito que repousassem ainda por um pouco de tempo, até que também se completasse o número dos seus conservos e seus irmãos que deviam ser mortos como eles o foram."
A visão das almas debaixo do altar em Apocalipse 6:9-11 tem gerado discussões sobre sua interpretação literal ou simbólica. Alguns estudiosos sugerem que essa passagem é uma prosopopeia do sangue, onde o sangue dos mártires clama por justiça de forma figurativa, como ocorre em Gênesis 4:10. No entanto, essa perspectiva levanta a questão: seria esse clamor realmente uma personificação do sangue, ou o texto aponta para a existência consciente das almas após a morte, aguardando o juízo final?
Referência fora de Apocalipse
Não há como negar que a passagem em questão remete claramente à mente do autor a Mateus 10:28, que afirma: “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma.” Alguns críticos dessa visão, como os adventistas, pensadores independentes e Testemunhas de Jeová, argumentam que o versículo apenas indica que o homem pode tirar a vida presente (o corpo), mas não pode extinguir a vida futura (a alma). Eles sustentam que o termo "alma" pode significar "vida" em outros contextos, como em Mateus 10:39:
[39] “Quem achar a sua vida (alma) perdê-la-á; mas quem perder a sua vida (alma) por minha causa, achá-la-á.”
Um erro comum em algumas interpretações é não considerar a amplitude semântica dos termos. No versículo 39, "alma" refere-se à vida presente, e não somente à futura, como alegam alguns intérpretes. Para alinhar Mateus 10:39 com a crença aniquilacionista e com Mateus 10:28, o texto deveria ser lido da seguinte forma:
Mateus 10:39
[39] “Quem achar o seu corpo perderá a alma; mas quem perder o seu corpo por minha causa achará a alma.”
O texto é claramente dicotômico, evidenciado pelo fato de que ambos os casos são lançados na Geena no mesmo versículo. Sejamos sinceros, é ilógico que a vida presente e a futura de uma pessoa sejam lançadas no fogo simultaneamente. Além disso, a escatologia de algumas dessas correntes também refuta essa visão, pois muitos acreditam que a vida presente dos ímpios será destruída com a vinda de Cristo, e não na Geena juntamente com o corpo.
Mateus 5:29
[29] “Se o teu olho direito te serve de pedra de tropeço, arranca-o e lança-o de ti; pois te convém mais que se perca um dos teus membros do que todo o teu corpo seja lançado na Geena.”
Se alguém ainda argumenta que "corpo" não deve ser entendido literalmente, o versículo acima é uma prova clara, já que olho e membros são partes do ser humano.
Análise contextual de Apocalipse 6:9-11
Agora retornando a Apocalipse 6, o próprio versículo 11 de Apocalipse 6 deixa claro que se trata de pessoas mortas, pois ele diz: "E a cada um deles foi dada uma veste branca, e foi-lhes dito que descansassem ainda por um pouco de tempo, até que se completasse o número dos seus conservos e seus irmãos, que haviam de ser mortos como eles foram." Essa descrição sugere que essas almas são indivíduos conscientes, recebendo vestes e aguardando junto a outros fiéis. Além disso, em Apocalipse 14:13, a expressão "Bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem de seus trabalhos, pois suas obras os acompanham" reafirma que essas almas representam pessoas que morreram por sua fé, indicando uma continuidade da vida consciente após a morte. Faça a experiência de ler o versículo 11 do capítulo 6 dando ênfase na parte em negrito para quem não crê na consciência pós-morte e depois pergunte se são ou não pessoas mortas! Eu te garanto que a reação da pessoa será frustrante!
Interpretar a passagem como uma prosopopeia do sangue cria não só uma incoerência, mas também uma redundância bizarra, pois implicaria que o sangue está clamando pela vingança de seu próprio sangue, o que não faz sentido. Além disso, a vingança mencionada no clamor das almas é repetida em Apocalipse 19:2, onde se afirma: "Pois verdadeiros e justos são os seus juízos, porque julgou a grande prostituta que corrompia a terra com a sua prostituição, e das mãos dela vingou o sangue dos seus servos." Aqui, a vingança é claramente direcionada às pessoas que derramaram o sangue dos servos de Deus, reforçando que o clamor é feito por almas conscientes, e não por uma personificação do sangue.
Não se trata, portanto, de uma personificação do sangue em Apocalipse 6, mas de uma comparação, assim como os espíritos imundos são comparados ao sopro em Apocalipse 16:13. Muitos alegam que as almas representariam sangue porque o sangue dos sacrifícios era derramado na base do altar (Levíticos 4:18), mas o texto bíblico não faz essa conexão explícita. O próprio apóstolo Paulo faz uma associação semelhante em Filipenses 2:17, ao se comparar a uma libação derramada. Da mesma forma, em Apocalipse 16, os espíritos imundos são descritos como saindo da boca do dragão, da besta e do falso profeta; e na verdade, "espírito" e "sopro" são o mesmo termo no grego ("pneuma"). Contudo, não se trata de uma mera personificação do sopro. Esses espíritos imundos são seres reais, o que é confirmado em Marcos 1:27, onde espíritos imundos são seres claramente conscientes. Portanto, assim como os espíritos imundos são seres reais, e não apenas um sopro personificado, as almas debaixo do altar em Apocalipse 6, da mesma forma, são pessoas de verdade, e não o sangue personificado.
Marcos 1:27 ARC
"[27] E todos se admiraram, a ponto de perguntarem entre si, dizendo: Que é isto? Que nova doutrina é esta? Pois com autoridade ordena aos espíritos imundos, e eles lhe obedecem!"
A tentativa de associar o clamor em grande voz de Apocalipse 6:10 com o clamor do sangue de Abel em Gênesis 4:10 enfraquece quando analisamos o capítulo 7 de Apocalipse. Nesse capítulo, as pessoas que saem da grande tribulação também clamam em grande voz e estão vestidas de branco: "Depois destas coisas olhei, e eis aqui uma grande multidão, a qual ninguém podia contar, de todas as nações, e tribos, e povos, e línguas, que estavam diante do trono e perante o Cordeiro, trajando vestes brancas e com palmas nas suas mãos; e clamavam com grande voz, dizendo: Salvação ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro" (Apocalipse 7:9-10). Se o clamor em grande voz fosse uma mera prosopopeia do sangue, seria incoerente que as mesmas pessoas, agora claramente identificadas como crentes ressuscitados ou vindos da tribulação, fizessem o mesmo tipo de clamor. Veja que no capítulo 7 estão os mesmos elementos do 6, como fiz questão de mostrar em negrito, mas a conveniência teológica fará as pessoas personificar o sexto capitulo e literalizar o sétimo.
Além disso, é relevante considerar a visão bíblica da alma em outros contextos. Em Gênesis 9:5, é dito que Deus pedirá contas do sangue do homem, pois "no sangue está a alma" (Levítico 17:11). Isto indica que a alma está associada ao sangue e representa a essência do ser humano. No Salmo 42:11, "A minha alma está abatida dentro de mim," a alma é representada como o interior do ser. De maneira semelhante, em 1 Reis 17:21, o profeta Elias ora e a alma do menino volta ao seu corpo, evidenciando que a alma é considerada como parte essencial da vida e do ser.
Portanto, a ideia de que o clamor em grande voz de Apocalipse 6:10 seja uma simples metáfora para o sangue de Abel se torna menos convincente à luz da evidência de que as almas descritas em Apocalipse 7:9-10 são identificadas como crentes ressuscitados ou vindos da tribulação, clamando de maneira similar. A continuidade do clamor em grande voz entre esses dois grupos de pessoas reflete uma expressão genuína de angústia e adoração, em vez de uma metáfora forçada.
Alguns argumentam que a menção de vestes brancas é simbólica, representando a purificação do pecado pelo sangue de Jesus, e, portanto, a cena deve ser entendida figurativamente. No entanto, a mesma simbologia é aplicada ao sacerdote Josué em Zacarias 3:3-5, onde Josué é descrito como "vestido de vestes sujas" e depois "vestido de roupas finas" como sinal de sua justificação. Apesar dessa simbologia, ninguém alega que Josué seja um personagem simbólico; ele é uma pessoa real, recebendo uma purificação real. A passagem de Zacarias diz: "E Josué, vestido de vestes sujas, estava diante do anjo. Então, falando, ordenou aos que estavam diante dele, dizendo: Tirai-lhe estas vestes sujas. E a ele disse: Eis que tenho feito com que passe de ti a tua iniquidade e te vestirei de vestes finas." Portanto, se Josué pode ser uma pessoa real com um significado simbólico aplicado a ele, o mesmo se aplica às almas debaixo do altar em Apocalipse 6: não são figuras simbólicas, mas pessoas reais cujas vestes brancas simbolizam a pureza adquirida através do sacrifício de Cristo.
Afirmar que as almas em Apocalipse 6 são figuradas pelo fato das vestes serem brancas não é uma interpretação fiel ao livro. Em Apocalipse 1:13-16, descreve-se Jesus com um rosto resplandecente como o sol, um aspecto literal confirmado em Mateus 17:2 durante a Transfiguração. No entanto, a espada que sai de Sua boca é uma metáfora para a Palavra de Deus, como evidenciado em Isaías 49:2, onde "a sua boca fez como uma espada afiada". Em livros simbólicos como Apocalipse, é comum a mescla do literal e do alegórico para transmitir suas mensagens. No céu, João vê anjos, seres literais, mas também observa o Cordeiro sendo glorificado, o que é uma imagem simbólica da majestade e do sacrifício de Cristo. Portanto, a presença de vestes brancas nas almas sob o altar deve ser entendida no contexto da simbologia cristã da pureza e justificação, mas isso não exclui a realidade das almas como seres conscientes aguardando a plena justiça de Deus.
Contexto Cultural
Outro aspecto relevante a ser destacado é o contexto cultural da época em que o livro de Apocalipse foi escrito. Esse contexto pode ser melhor compreendido ao se analisar a literatura extrabíblica e judaica dos primeiros séculos. Vejamos, portanto, as citações de dois apócrifos e do Talmud, que abordam o clamor das almas, tema também presente em Apocalipse:
1. Enoque 9:10, Pseudepígrafo
10 “E agora, eis que as almas daqueles que morreram estão chorando e fazendo seu apelo aos portões do céu, e suas lamentações subiram: e não podem cessar por causa das ações ilegais que são cometidas na terra.”
Data: 200-50 a.C. (com base em estimativas acadêmicas)
2. 4 Esdras 4:35, Pseudepígrafo
35 “Não são estas as perguntas que foram feitas pelos justos no depósito de almas: ‘Quanto tempo devemos ficar aqui? Quando começará a colheita, quando receberemos nossa recompensa?’ 36 E o arcanjo Uriel lhes deu esta resposta: ‘Assim que o número de semelhantes a vós estiver completo. Pois o Senhor pesou o mundo na balança, 37 mediu e contou os séculos; ele não moverá nada, nada alterará, até que o número designado seja alcançado.’”
Data: 70-100 d.C.
Essas referências apócrifas mostram uma crença no clamor das almas semelhante à descrita em Apocalipse 6:9-11, sugerindo que a visão de João refletia uma crença já estabelecida entre os judeus. Curiosamente, o conceito de almas sob o altar também aparece em textos judaicos contemporâneos a João:
Avot D'Rabi Natan 26:2, Mishná
“Quem é sepultado na Babilônia é como se fosse sepultado na Terra de Israel. Quem é sepultado na Terra de Israel é como se fosse sepultado debaixo do altar, pois toda a Terra de Israel está apta para o altar. Quem é sepultado debaixo do altar é como se fosse sepultado sob o Trono da Glória, como diz (Jeremias 17:12): ‘Um Trono de Glória, exaltado desde o princípio, é o lugar do nosso Santuário.’”
Avot D'Rabbi Natan 12:8, Mishná, rabínico
“E não apenas a alma de Moisés está armazenada sob o Trono da Glória, mas também as almas de todos os justos estão armazenadas lá!”
Data: 190-230 d.C.
Embora essas descrições extrabíblicas não sejam idênticas à Bíblia, existem notáveis semelhanças, como o clamor das almas e o conceito de almas sob um altar, que refletem uma crença judaica contemporânea a João.
Portanto, Apocalipse 6:9-11 confirma uma crença judaica existente. A questão é como os judeus da época conheciam essas ideias sobre o clamor das almas, como descrito em Apocalipse. Para alguns, isso poderia ser visto como influência grega. No entanto, essa hipótese é contestável. Aqui estão duas possibilidades para considerar:
1. Midrash: Os judeus poderiam ter interpretado passagens como Gn 4:10, 9:4 e Zc 12:1 como tipificações do que ocorre após a morte. Essa visão é corroborada por antigos apócrifos judaicos, como:
1 Enoque 22
4 “Estes lugares, nos quais habitam, eles ocuparão até o dia do julgamento, e até seu período escolhido. 5 Seu período escolhido será longo, mesmo até o grande julgamento. E vi os espíritos dos filhos dos homens que estão mortos; e suas vozes rompem o céu, enquanto eles são acusados. 6 Então inquiri de Rafael, o anjo que estava comigo, e disse: ‘Que espírito é aquele, cuja voz alcança o céu e acusa?’ 7 Ele respondeu: ‘Este é o espírito de Abel, que foi morto por Caim seu irmão; ele acusará aquele irmão, até que sua semente seja destruída da face da terra.’”
2. Uma Revelação Divina: O Novo Testamento mostra que havia pessoas com dons proféticos na época, como Simeão, que foi revelado pelo Espírito Santo (Lucas 2:25-26). Assim, não seria surpreendente se uma revelação semelhante influenciasse os escritores judeus.
É importante notar que o uso de literatura extrabíblica como pano de fundo cultural não implica que tais textos sejam considerados Escrituras. Paulo e Judas fazem referência a obras não canônicas para afirmar verdades que encontram eco na Bíblia (Tito 1:12 e Judas 1:14-15):
Tito 1:12-14
12 “Um dentre eles, próprio profeta seu, disse: Cretenses são sempre mentirosos, más bestas, glutões preguiçosos. 13 Esse testemunho é verdadeiro. Por essa razão, repreende-os asperamente, para que sejam sãos na fé 14 e não deem ouvidos a fábulas judaicas, nem a mandamentos de homens que se desviam da verdade.”
Judas 1:14-15
14 “A estes também é que profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão, quando disse: Eis que o Senhor veio, com miríades de seus santos, 15 a executar juízo sobre todos e a convencer a todos os ímpios de todas as obras ímpias que impiamente cometeram e de todas as palavras duras que pecadores ímpios pronunciaram contra ele.”
Paulo cita o filósofo grego Epimênides (600 a.C.) e Judas o livro de 1 Enoque. Embora esses livros não sejam partes da Bíblia, neles há verdades que são confirmadas pelas Escrituras. Um exemplo cotidiano seria o Alcorão. Todos nós, cristãos, acreditamos que Maomé não foi profeta de Deus; todavia o livro dos mulçumanos diz que Gabriel é um anjo de Deus; e "esse testemunho é verdadeiro"!
Finalmente, é válido observar que o clamor das almas em Apocalipse 6:9 não deve ser interpretado como uma expressão de vingança pessoal. Em vez disso, representa uma súplica pela justiça divina, na qual os mártires confiam em Deus para exercer a justiça e punir os injustos. Isso é confirmado por Apocalipse 16:5-6, onde os anjos, que são seres santos, também expressam uma forma de justiça divina.
Em síntese, interpretação de Apocalipse 6:9-11 deve ser compreendida como uma comparação, e não como uma personificação do sangue. Assim como os demônios são comparados ao fôlego em Apocalipse 16:13, os mortos são comparados à oferta que é colocada sob altar (Fp 2:17), e não uma prosopopeia. O próprio versículo 11 deixa claro que se trata de pessoas mortas, ao dizer "até que também se completasse o número dos seus conservos e seus irmãos que deviam ser mortos como eles o foram". Além disso, a ideia de que o sangue clama para que se vingue seu próprio sangue é incoerente e estranha. O ensino de Mateus 10:28 sobre a imortalidade da alma e o contexto cultural judaico corroboram que essas almas são, de fato, pessoas conscientes que foram mortas por sua fé, reafirmando que a visão de João representa a realidade das almas como seres reais aguardando a plena justiça de Deus.
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