Os 42 meses de Apocalipse 13 são 1260 anos?
"Vi emergir do mar uma besta com dez chifres e sete cabeças. Sobre os chifres havia dez diademas e, sobre as cabeças, nomes de blasfêmia. A besta que vi era semelhante a um leopardo, com pés como os de um urso e boca como a de um leão. O dragão deu a ela seu poder, seu trono e grande autoridade. Vi então uma de suas cabeças como golpeada de morte, mas sua ferida mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou, seguindo a besta. Adoraram o dragão, pois ele deu sua autoridade à besta; e adoraram também a besta, dizendo: “Quem é semelhante à besta? Quem pode lutar contra ela?” Foi-lhe dada uma boca que proferia arrogâncias e blasfêmias, e autoridade para agir por quarenta e dois meses." (Apocalipse 13:1-5 ARA).
Sinceramente, nunca vi uma passagem tão mal interpretada quanto o décimo terceiro capítulo de Apocalipse. A forma como certas vertentes escatológicas tratam esse texto chega a ser cômica, se não fosse trágica.
Na teologia certas igrejas, por exemplo, os quarenta e dois meses de governo da primeira besta seriam 1.260 anos de domínio papal, de 538 d.C. a 1798 d.C., quando o papa foi preso por Napoleão Bonaparte. Eles, como a maioria dos cristãos, acreditam que os 42 meses de Apocalipse 13:5 são os mesmos 1.260 dias de Apocalipse 12:6, período em que a mulher é preservada no deserto. Até aqui, tudo bem; afinal, as duas quantidades equivalem a 3,5 anos. Porém, surge um grande problema: qual é o critério bíblico para transformar uma profecia em meses, converter esses meses em dias e, em seguida, considerar esses dias como anos? Conveniência? Parece que sim! Suponhamos que um profeta bíblico diga que uma profecia ocorrerá em dois meses. Nessa mentalidade, deveríamos transformar esses meses em dias e, então, considerar esses dias como anos, ou seja, no exemplo dado, seriam 60 anos.
Como justificativa, usam dois textos:
"Segundo o número dos dias em que espiastes a terra, quarenta dias, cada dia representando um ano, levareis sobre vós as vossas iniquidades quarenta anos e tereis experiência do meu desagrado." (Números 14:34 ARA)
"Quando tiveres cumprido estes dias, deitar-te-ás sobre o teu lado direito e levarás sobre ti a iniquidade da casa de Judá. Quarenta dias te dei, cada dia por um ano. Voltarás, pois, o rosto para o cerco de Jerusalém, com o teu braço descoberto, e profetizarás contra ela." (Ezequiel 4:6-7 ARA)
Como se percebe, em nenhum momento há uma regra para transformar meses em dias e, depois, considerar esses dias como anos. Muito menos há uma norma interpretativa de que sempre que uma profecia estiver em dias, devemos considerá-la como anos. Trata-se apenas de um caso específico em que Deus ordena que uma prática realizada em dias por alguns de seus servos represente anos de castigo sobre os desobedientes. É o que chamamos de simbolização por miniatura, onde Deus manda o profeta fazer algo que será representado em uma escala maior sobre um povo, cidade ou nação. No próprio capítulo 4 de Ezequiel, um tijolo é uma miniatura simbólica de Jerusalém, e uma assadeira, de seus muros:
"Tu, pois, ó filho do homem, toma um tijolo, põe-no diante de ti e grava nele a cidade de Jerusalém. Põe cerco contra ela, edifica contra ela fortificações, levanta contra ela tranqueiras e põe contra ela arraiais e aríetes em redor. Toma também uma assadeira de ferro e põe-na por muro de ferro entre ti e a cidade; dirige para ela o rosto, e assim será cercada, e a cercarás; isto servirá de sinal para a casa de Israel." (Ezequiel 4:1-3 ARA)
Será que alguém começará a aplicar o princípio tijolo-Jerusalém ou assadeira-muro? Acredito que não! Esse estilo literário e profético, baseado em miniatura como representação, não aparece em Apocalipse, certo? E o mais importante: o próprio Deus deixa claro que os dias em Ezequiel serão considerados anos.
No capítulo 5 de Ezequiel, encontramos o mesmo padrão de simbolização por miniatura. O profeta corta seu cabelo e o divide em três partes, representando o que aconteceria com o povo:
"Tu, ó filho do homem, toma uma espada afiada; como navalha de barbeiro a tomarás e a farás passar pela tua cabeça e pela tua barba; tomarás uma balança de peso e repartirás os cabelos. Uma terça parte queimarás, no meio da cidade, quando se cumprirem os dias do cerco; tomarás outra terça parte e a ferirás com uma espada ao redor da cidade; e a outra terça parte espalharás ao vento; desembainharei a espada atrás deles. Desta terça parte tomarás uns poucos e os atarás nas abas da tua veste. Destes ainda tomarás alguns, e os lançarás no meio do fogo, e os queimarás; dali sairá um fogo contra toda a casa de Israel." (Ezequiel 5:1-4 ARA)
Agora a representação:
"Uma terça parte de ti morrerá de peste e será
consumida de fome no meio de ti; outra terça parte cairá à espada em redor de
ti; e a outra terça parte espalharei a todos os ventos e desembainharei a
espada atrás dela. Assim, se cumprirá a minha ira, e satisfarei neles o meu
furor e me consolarei; saberão que eu, o Senhor, falei no meu zelo, quando
cumprir neles o meu furor." (Ezequiel 5:12-13 ARA)
Então, como devemos interpretar Apocalipse 13:5?
O capítulo 17 do Apocalipse praticamente explica o capítulo
13. Nele, encontramos uma informação valiosa:
"Aqui está o sentido, que tem sabedoria: as sete
cabeças são sete montes, nos quais a mulher está sentada. São também sete reis,
dos quais caíram cinco, um existe, e o outro ainda não chegou; e, quando
chegar, tem de durar pouco." (Apocalipse 17:9-10 ARA)
A expressão "durar pouco" certamente se refere aos
42 meses, ou seja, 3,5 anos. É difícil imaginar que se refira a 1.260 anos. Um
reinado de 1.260 anos não pode ser considerado pouco tempo, certo?
Para fugir do óbvio, alguns alegam que "pouco
tempo" é no tempo de Deus, como interpretam o "pouco tempo" do
diabo em Apocalipse 12:12. No entanto, como veremos a seguir, esse não é o
único motivo para crermos que os 42 meses sejam literais.
Outro ponto a destacar é que Apocalipse 13:5 é paralelo a
Daniel 7:25:
"Foi-lhe dada uma boca que proferia arrogâncias e
blasfêmias e autoridade para agir quarenta e dois meses." (Apocalipse 13:5
ARA)
"Proferirá palavras contra o Altíssimo, magoará os
santos do Altíssimo e cuidará em mudar os tempos e a lei; e os santos lhe serão
entregues nas mãos, por um tempo, dois tempos e metade de um tempo."
(Daniel 7:25 ARA)
E aí você se pergunta: qual o problema? O que isso prova que
estão errarados? O primeiro ponto é entender como Daniel compreendia a
expressão "tempos":
"Serás expulso de entre os homens, e a tua morada será
com os animais do campo; e far-te-ão comer ervas como os bois, e passar-se-ão
sete tempos por cima de ti, até que aprendas que o Altíssimo tem domínio
sobre o reino dos homens e o dá a quem quer." (Daniel 4:32 ARA)
Aqui, vemos uma profecia em que a mesma expressão é usada
por Daniel. Agora pergunto: será que esse pessoal transformará os tempos (que
obviamente são anos!) em dias e, depois, considerá-los-á como anos? Será que
Nabucodonosor viveu 2.520 anos? Por que entender a expressão "tempos"
de uma forma no capítulo 4 e de outra no capítulo 7? Acredito que não há uma
resposta satisfatória.
Daniel 9:24
Daniel 9:24 ARC
“[24] Setenta semanas estão determinadas sobre o teu
povo e sobre a tua santa cidade, para extinguir a transgressão, e dar fim aos
pecados, e expiar a iniquidade, e trazer a justiça eterna, e selar a visão e a
profecia, e ungir o Santo dos santos.”
Embora muitos também utilizem Daniel 9:24 para apoiar o
princípio dia-ano, é importante destacar que o termo hebraico
"shavua", traduzido como "semana", segundo o dicionário STRONG , refere-se simplesmente a um período de sete, seja de dias ou de anos. O
significado exato depende do contexto em que é usado, não sendo um princípio
fixo de interpretação.
Para ilustrar, em Ezequiel 45:21, encontramos um exemplo
onde o termo "yom" (dia) é acrescentado para especificar que
"shavua" refere-se a dias: "No primeiro mês, no dia catorze do
mês, tereis a Páscoa, uma festa de sete dias; pão sem fermento se
comerá." (Ezequiel 45:21 ARA). Aqui, "sete dias" é claramente
especificado, indicando que, no contexto, "shavua" refere-se a um
período de sete dias. Se olharmos em comentários de judeus e cristãos que não
participam dessa controvérsia discutida, verá que a maioria dirá que Daniel 9:24
é literalmente “setenta setes”.
Portanto, a interpretação de "shavua" como um período de sete anos em Daniel 9:24 não se baseia no princípio dia-ano, mas na compreensão contextual do texto. O termo em si é neutro, podendo referir-se a sete dias ou sete anos, dependendo do contexto. Um caso similar é "elohim" que, por mais que seja traduzido majoritariamente por "Deus" ou "deuses", também pode, dependendo do contexto também ser entendido como alguém com autoridade, como um juiz (Ex. 21:6 e 22:8,9). Isso ressalta a importância de analisar o contexto bíblico e linguístico antes de aplicar qualquer regra interpretativa de maneira.
Problemas de lógica
Embora o princípio dia-ano seja amplamente adotado em várias
interpretações do Apocalipse, observa-se uma notável inconsistência quando se
trata da aplicação desse princípio ao milênio. Muitos aplicam o princípio
dia-ano ao longo do livro para interpretar períodos de tempo, mas optam por não
fazê-lo em relação ao milênio. Se aplicássemos o princípio dia-ano ao milênio,
que é de mil anos em Apocalipse 20, o período se estenderia para 360.000 anos,
um intervalo de tempo absurdamente longo e claramente irrealista dentro do
contexto interpretativo de certos movimentos religiosos. Essa escolha seletiva
sugere uma aplicação conveniente do princípio, adaptada para atender a uma
visão pré-estabelecida.
Além disso, embora o princípio dia-ano seja frequentemente
defendido com base em passagens como Ezequiel 4:6, onde um ano é representado
por cada dia, essa abordagem não é uniformemente aplicada. Por exemplo, em
Ezequiel 29:12, onde o Egito é condenado a ser desolado por quarenta anos,
aplicar o princípio dia-ano resultaria em um período de 14.600 anos, uma
duração igualmente absurda e desproporcional ao contexto histórico e profético.
Esse tratamento desigual do princípio dia-ano levanta questões sobre a coerência
interpretativa e a validade de aplicar tal princípio de forma tão seletiva.
Em conclusão, movimentos religiosos defendem a transformação
dos 42 meses mencionados em Apocalipse 13:5 em 1260 anos, utilizando o
princípio dia-ano com base, principalmente, em Ezequiel 4 e Daniel 9. No
entanto, essa interpretação carece de uma base exegética sólida. Em Ezequiel 4,
o profeta utiliza um ato simbólico de miniaturização para representar anos, mas
isso não justifica aplicar o princípio dia-ano de forma generalizada em todas
as profecias bíblicas. Esses mesmos intérpretes não aplicam o princípio dia-ano
ao milênio em Apocalipse 20, que, se seguissem a mesma lógica, resultaria em
360.000 anos, nem ao período de 40 anos mencionado em Ezequiel 29:12, o que
revelaria uma duração impossível de 14.400 anos. Além disso, o termo hebraico
para "semana" em Daniel 9 pode simplesmente significar um ciclo de
sete, seja de dias ou anos, sem a necessidade de aplicar o princípio dia-ano.
Portanto, a interpretação de 42 meses como 1260 anos é, em última análise, uma
construção teológica conveniente, sem suporte textual ou metodológico
consistente, destacando uma abordagem hermenêutica que é mais guiada por
doutrinas já pré-estabelecidas do que por uma análise rigorosa do texto
bíblico.
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