Só 144 mil morarão no céu?

 


A questão sobre quem habitará o céu, muitas vezes relacionada ao número de 144 mil mencionados no livro de Apocalipse, é objeto de diversas interpretações no meio cristão. Alguns acreditam que esse número se refere ao total de cristãos que terão o privilégio de morar no céu, mas uma análise mais profunda das Escrituras sugere que essa visão pode ser equivocada. Embora o número 144 mil tenha um significado especial no texto bíblico, não parece ser uma referência exclusiva aqueles que, segundo várias vertentes cristãs, morariam no céu.

Essa visão, que defende esse número reduzido de cristãos tendo um privilégio a mais que os demais, partilhada por nossos queridos amigos Testemunhas de Jeová, que, sem dúvida, são pessoas de grande integridade, não se limita apenas a um grupo que habitará o céu. Eles acreditam que, desde a ascensão de Cristo até sua segunda vinda, apenas os 144 mil, mencionados em Apocalipse 7:4 e 14:1-3, terão direito imediato à vida eterna no céu. Esse grupo é descrito como "comprados da terra" e selados para viver junto com Cristo em seu Reino celestial. O restante, conhecido como a "Grande Multidão" (Apocalipse 7:9), é interpretado como aqueles que sobreviverão à grande tribulação e permanecerão na Terra.

Segundo essa visão, a Grande Multidão passará por um longo processo de aperfeiçoamento durante o milênio, com base em passagens como Apocalipse 20:4-6, onde Jesus e os 144 mil reinarão e governarão sobre a humanidade (Grande Multidão). Durante esse período, que se refere ao governo milenar de Cristo, os sobreviventes serão ensinados e aperfeiçoados para se conformarem aos princípios do Reino de Deus. Após esse tempo de refinamento, será necessário enfrentar uma última prova, conforme mencionado em Apocalipse 20:7-10, quando Satanás será solto para tentar novamente a humanidade. Somente após essa provação final é que, de acordo com essa interpretação, aqueles que forem fiéis alcançarão a vida eterna na Terra, em cumprimento à promessa de Deus de um paraíso restaurado, como predito em Isaías 65:17-25.

Não é necessário ser um profeta para prever a reação de outros cristãos ao se depararem com essa interpretação. Para a grande maioria das denominações cristãs, a ideia de que apenas um número limitado de 144 mil pessoas será salvo até a vinda de Jesus, enquanto o restante enfrentará uma segunda prova durante o milênio, é surpreendente e até mesmo incompreensível. O texto, na minha concepção, realmente fala de um número literal de 144 mil israelitas protegidos em um determinado período da história, mas chegar à conclusão de nossos amigos é, no mínimo, desafiador. A noção de uma segunda oportunidade ou um processo adicional de aperfeiçoamento antes de alcançar a vida eterna é estranha para muitas correntes cristãs, que veem a salvação como algo acessível a todos os que creem em Cristo, sem uma divisão numérica tão específica ou a necessidade de uma prova adicional após a volta de Jesus.

Para que essa perspectiva funcione, é necessário acreditar que os 144 mil mencionados em Apocalipse sejam literais em número, mas figurados em sua identidade, sendo considerados judeus espirituais, ou seja, a Igreja. A ideia é que esses 144 mil não representem apenas israelitas físicos, mas sim cristãos selecionados que compõem esse grupo especial. Outro alicerce fundamental para essa crença é a conexão entre os 144 mil e os povos mencionados em Apocalipse 5:9-10, que reinarão sobre a Terra. Para reforçar essa interpretação, procura-se vincular o cântico dos 144 mil, descrito em Apocalipse 14:3, com o cântico dos redimidos em Apocalipse 5:9. Ao fazer isso, tenta-se sugerir que ambos os grupos representam o mesmo povo, os que governarão com Cristo:

"Quando tomou o livro, os quatro seres viventes e os vinte e quatro anciãos prostraram-se diante do Cordeiro, tendo cada um deles uma harpa e taças de ouro cheias de incenso, que são as orações dos santos, e entoavam um cântico novo, dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação, e para o nosso Deus os constituíste reino e sacerdotes; e reinarão sobre a terra." Apocalipse 5:8-10

"Entoavam um cântico novo diante do trono, diante dos quatro seres viventes e dos anciãos; e ninguém podia aprender o cântico, senão os cento e quarenta e quatro mil que foram comprados da terra." Apocalipse 14:3 

A ideia de que apenas os 144 mil estarão no céu se apoia no fato de que eles são descritos entoando o cântico "diante dos quatro seres viventes e dos anciãos" (Apocalipse 14:3), os quais estão constantemente associados à cena celestial. Isso é interpretado como uma indicação de que o cântico ocorre no próprio céu, sugerindo que apenas esse grupo restrito tem o privilégio de estar nessa presença direta de Deus. Além disso, no versículo anterior, Apocalipse 14:1, os 144 mil são vistos com o Cordeiro sobre o Monte Sião, que, nessa interpretação, é compreendido como uma referência simbólica ao céu, reforçando a ideia de que apenas eles compartilham desse lugar celestial com Cristo.

O grande problema dessa interpretação começa com a compreensão de Apocalipse 7, cuja ideia de selar os 144 mil é extraída de Ezequiel 9. Em Ezequiel 9:4-6, Deus ordena que um homem/anjo marque simbolicamente na testa aqueles que lamentam pelos pecados cometidos em Jerusalém:

"E disse o Senhor: Passa pelo meio da cidade, pelo meio de Jerusalém, e marca com um sinal a testa dos homens que suspiram e gemem por causa de todas as abominações que se fazem nela. E aos outros disse eu, ouvindo: Passai pela cidade atrás dele e feri; não tenha o teu olho piedade, nem tenhas compaixão. Matai os velhos, moços, e virgens, crianças e mulheres, até que todos sejam destruídos; mas a todos sobre os quais houver o sinal, não chegareis; e começai pelo meu santuário."

Esse selo era um sinal de proteção contra a destruição iminente. Da mesma forma, em Apocalipse 7:3-4, os 144 mil são selados antes do juízo:

"Não danifiqueis a terra, nem o mar, nem as árvores, até que tenhamos selado na testa os servos do nosso Deus. E ouvi o número dos selados: cento e quarenta e quatro mil selados de todas as tribos dos filhos de Israel."

Portanto, se seguirmos a lógica que está no capítulo 9 de Ezequiel, que mostra a mesma ideia do capítulo 7 de Apocalipse, o texto estará se referindo sem sombras de dúvidas a um período determinado em que Deus protege os seus servos enquanto o juízo é derramado, e não a uma seleção ao longo de séculos que termina na segunda vinda de Cristo.

Ademais, o próprio texto de Apocalipse 7 é um contexto puramente terreno, pois, como mencionado, é instruído que "não danifiqueis a terra, nem o mar, nem as árvores" (Apocalipse 7:3). Essa ênfase na proteção da terra sugere que o foco está em um cenário que envolve a humanidade e o ambiente, e não o próprio céu, como sugerem nossos amigos. Além disso, a palavra "Sião", mencionada em Apocalipse 14:1, se encaixa perfeitamente com os 144 mil, que são destacados como provenientes de cada tribo de Israel. Sião, de fato, é uma referência geográfica a uma área em Israel, especificamente a Jerusalém, o que reforça a ideia de que os 144 mil têm uma conexão direta com esse povo na Terra, e não a um sentido espiritual ou celestial. Essa ligação geográfica e cultural torna ainda mais difícil interpretar o contexto de Apocalipse 7 e 14 como um plano restrito a um grupo seleto no céu. 

Como se não bastasse, a própria expressão "diante", utilizada em Apocalipse 14:3, que parece sugerir uma referência ao céu, é facilmente respondida mais adiante no próprio texto. Em Apocalipse 14:10, os adoradores da besta são descritos como sendo atormentados "diante dos anjos", mas sabemos que eles estarão fora do reino ou da nova criação. Essa expressão é mais bem entendida como "aos olhos" (do grego enopion), que também é utilizado em Lucas 1:15, onde se diz:

"Porque será grande diante do Senhor e não beberá vinho nem bebida forte; e será cheio do Espírito Santo, já desde o ventre de sua mãe."

Assim, em vez de indicar uma localização literal no céu, "diante" pode ser interpretado como uma referência à visibilidade ou ao testemunho de todos sobre a adoração dos 144 mil, reforçando a ideia de que a cena descrita em Apocalipse 14 não se restringe a uma exclusividade celestial. Mesmo com uma interpretação não literal, vendo essas pessoas como um símbolo de um número limitado do povo de Deus, colocá-los no céu já seria um grande desafio. E mesmo se os colocássemos no céu, afirmar que só eles reinariam sobre o milênio ou que só eles teriam a vida eterna garantida com a manifestação de Jesus seria uma tremenda dificuldade pra qualquer crente nessa doutrina. Afinal, em nenhum lugar de Apocalipse ou até mesmo do texto sagrado é afirmado que só o número descrito de pessoas teria esses galardões com a chegada do Senhor Jesus, não é mesmo?

Além do mais, ligar Apocalipse 14 com o capítulo 5 revela uma fragilidade significativa nessa interpretação. É verdade que essa poderia ser a única forma de afirmar que os 144 mil israelitas seriam, na verdade, judeus espirituais. Contudo, o cântico do capítulo 5 não é entoado pelos 144 mil nem pelos povos de todas as nações, que reinarão sobre a terra, mas sim pelos quatro seres viventes e pelos anciãos. Apocalipse 5:8-10 diz:

" e, quando tomou o livro, os quatro seres viventes e os vinte e quatro anciãos prostraram-se diante do Cordeiro, tendo cada um deles uma harpa e taças de ouro cheias de incenso, que são as orações dos santos,  e entoavam novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação e para o nosso Deus os constituíste reino e sacerdotes; e reinarão sobre a terra."

Por outro lado, em Apocalipse 7:9, a descrição da grande multidão é semelhante:

"Depois destas coisas olhei, e eis aqui uma grande multidão, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos de vestiduras brancas e com palmas nas mãos."

A repetição da expressão "de toda tribo, língua, povo e nação" nos dois textos sugere que tanto a grande multidão quanto os redimidos em Apocalipse 5 têm um chamado universal, questionando a exclusividade da interpretação que limita os 144 mil a um grupo específico com privilégios sobre os demais. Essa similaridade na linguagem aponta para uma inclusão mais ampla do povo de Deus, enfatizando que a salvação e a adoração se estendem além de um número restrito de israelitas, sejam espirituais ou não. Indo direto ao ponto, enquanto o texto de Apocalipse 5:8-10 aponta para a grande multidão, "que ninguém consegue contar", como a referência mais lógica, nossos amigos sugerem os 144 mil, um número restrito.

Em conclusão, a interpretação que limita os 144 mil mencionados em Apocalipse a um grupo restrito que habitará o céu, enquanto a Grande Multidão teria um processo adicional de aperfeiçoamento na Terra, é problematizada por uma análise mais ampla das Escrituras. A conexão com Ezequiel e a natureza do selo nos revelam uma proteção de Deus sobre Seu povo durante um tempo de juízo, sem implicar uma exclusividade celestial. Além disso, a linguagem inclusiva que caracteriza tanto os 144 mil quanto a Grande Multidão sugere um plano de salvação abrangente que envolve todas as nações, tribos e povos, desafiando a ideia de uma divisão numérica que limita a presença de Deus apenas a um grupo específico. Assim, a verdadeira mensagem do Apocalipse pode ser uma de esperança e inclusão, onde todos os redimidos têm acesso à vida eterna e à presença de Deus, em conformidade com a promessa de um Reino restaurado. Fiquem todos com Deus!

Referência:

Pexels. (n.d.). Vista aérea de cloudscape. Disponível em: https://www.pexels.com/pt-br/foto/vista-aerea-de-cloudscape-314726/. Acesso em: 22 out. 2024.




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