A maioria dos mortalistas realmente entendem o que leem?
Que a paz do Senhor esteja com todos!
Hoje proponho uma abordagem deliberadamente provocativa, porém realista, acerca de determinadas leituras feitas pelos mortalistas, isto é, aqueles que defendem a morte da alma ou a inconsciência após a morte para sustentar suas convicções religiosas. Diante da insistência quase constante, e muitas vezes exaltada, com que essas posições são defendidas nas redes sociais, faço questão, neste momento, de analisar criticamente as principais passagens bíblicas às quais recorrem para fundamentar tais crenças.
A suposta composição humana
Para começar, nada melhor do que o próprio livro de Gênesis. Segundo esse povo "iluminadíssimo" em sua certeza, ali estaria revelada, de forma inequívoca e definitiva, a composição do homem. O texto-chave, claro, é Gênesis 2:7:
"Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente."
A partir daí, o mortalista, agora já satisfeito com a "prova irrefutável", conclui que o homem não tem uma alma, mas é uma alma. Vai além e afirma que alma nada mais é do que a soma do fôlego de vida com o pó da terra, ou seja, o homem inteiro. Caso encerrado, discussão resolvida, exegese completa… pelo menos na convicção entusiasmada de quem lê o texto como se ele dissesse exatamente o que gostaria que dissesse.
Pelo menos no contexto brasileiro, essa leitura rasa até se torna compreensível. Pesquisas indicam que uma parcela significativa da população não tem o hábito da leitura. Se o mortalista lesse um pouco mais, e não apenas o versículo que lhe convém, perceberia que, em Levítico, há uma proibição explícita de tocar em cadáver, expressa nos seguintes termos:
"Não se chegará a cadáver algum (nefesh met), nem se contaminará por causa de seu pai ou de sua mãe." (Levítico 21:11, ARA)
O ponto curioso é que a expressão traduzida por "cadáver" é, literalmente, "alma morta". Ou seja, mesmo após a perda do fôlego de vida (que, segundo a definição mortalista, seria um dos elementos constitutivos da "alma") o homem continua sendo chamado de alma.
Na realidade, qualquer "alma" que leia a Bíblia com um mínimo de atenção logo perceberá que "nefesh" é um termo polissêmico, podendo significar "pessoa", "ser" ou "indivíduo". Com fôlego de vida, o homem é uma pessoa viva; sem fôlego de vida, continua sendo uma pessoa (agora, uma pessoa morta). Em outras palavras, após receber o fôlego de vida, o homem se tornou um ser vivente.
Homem e animal são iguais?
"[19] Porque o que sucede aos filhos dos homens, isso mesmo também sucede aos animais; a mesma coisa lhes sucede: como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego/espírito; e a vantagem dos homens sobre os animais não é nenhuma, porque todos são vaidade. [20] Todos vão para um lugar; todos são pó e todos ao pó tornarão. [21] Quem adverte que o fôlego dos filhos dos homens sobe para cima e que o fôlego dos animais desce para baixo da terra? (Eclesiastes 3:19-21)
O próximo texto, talvez um dos mais citados por esse grupo, encontra-se em Eclesiastes. Como a maioria das versões em português traduz a passagem com a expressão "o mesmo espírito", o mortalista, naturalmente, se enche de entusiasmo. Para ele, o texto estaria oferecendo uma prova cristalina de que homens e animais são, portanto, iguais. Ou seja, da mesma forma que o animal é, o homem também seria.
Na primeira vez em que me deparei com essa argumentação, cheguei a ficar impressionado. Contudo, quanto mais se aprofunda a pesquisa, mais evidente se torna o quão falhas são certas tentativas interpretativas. Um ponto inicial fundamental é lembrar que a palavra hebraica traduzida como "mesmo" אֶחָד (echad), a mesma empregada na expressão "uma só carne" em Gênesis 2:24, na declaração "o Senhor é um" em Deuteronômio 6:4. A tradução judaica do Chabad, por exemplo, traduz assim:
"Pois há um acontecimento para os filhos dos homens, e há um acontecimento para os animais — e eles têm um só acontecimento; como a morte deste, assim é a morte daquele; e todos têm um só espírito, e a superioridade do homem sobre o animal é nada, pois tudo é vaidade. Todos vão para um só lugar; todos vieram do pó, e todos retornam ao pó. Quem sabe se o espírito dos filhos dos homens é o que sobe para o alto, e o espírito do animal é o que desce para baixo, à terra?"
Logo, concluem eles, o homem não teria vantagem alguma sobre o animal, pois ambos possuem um só espírito (ou, se preferirem, um fôlego de vida) e não o mesmo espírito no sentido de identidade pessoal. O termo hebraico echad é mais bem traduzido simplesmente por "um", e não por "o mesmo". Nenhum teria, portanto, mais de uma vida.
Doutrina da serpente?
"Então, a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis" (Gênesis 3:4 TB)
Outro texto muito usado pelos mortalistas é justamente o episódio da serpente, que afirma que o homem não morreria caso comesse do fruto. Para eles, a doutrina da imortalidade da alma seria apenas uma nova versão da própria doutrina da serpente, pois ensina que o ser humano continua vivo após a morte, ainda que em forma de alma.
O problema dessa ideia está no próprio conceito de morte definido por Deus: "porque tu és pó, e ao pó tornarás" (Gn 3:19). Ora, o que volta ao pó é o corpo (Eclesiastes 12:1), e não a alma.
Isso se encaixa perfeitamente com a declaração de Jesus em Mateus 10:28: "Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode destruir no inferno tanto a alma como o corpo." O texto é claro ao afirmar que o que é morto é o corpo, enquanto a alma permanece distinta.
Os mortos não louvam a Deus
O próximo texto comumente citado é o Salmo 6, que afirma:
"Pois, na morte, não há recordação de ti; no Sheol, quem te dará louvor?" (Salmos 6:5 TB)
Para quem lê apenas esse versículo, isoladamente, a armadilha teológica é quase inevitável. No entanto, a Bíblia não é um texto solto, mas um conjunto coerente de escritos que se interpretam mutuamente. Em outro salmo, o próprio salmista levanta a seguinte pergunta:
"Que proveito haverá no meu sangue, quando descer à cova? Acaso o pó te louvará? Anunciará ele a tua verdade?" (Salmo 30:9)
O paralelismo é esclarecedor. Quando o salmo questiona quem o louvará no Sheol, a referência não é a uma suposta inconsciência da alma, mas ao cadáver, à condição do corpo que desce à sepultura e se torna pó. O argumento do salmista é retórico e litúrgico: um corpo reduzido ao pó não participa do culto público nem proclama os feitos de Deus entre os vivos.
Eu sei que o termo "Sheol" é alvo de discussões, mas AQUI está um estudo mais detalhado sobre Sheol na Bíblia.
O salário do pecado é a morte
" Pois o salário do pecado é a morte, mas o dom de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor." (Romanos 6:23 TB)
Mortalistas costumam recorrer ao texto que afirma que “o salário do pecado é a morte” para sustentar que esse versículo aniquila praticamente o conceito de alma imortal. O argumento parte da ideia de que não é apenas o corpo que participa do pecado, mas também a alma; logo, a alma também deveria morrer. Confesso que considero esse raciocínio até logicamente "fofinho".
Entretanto, toda essa construção criativa se desmorona mais adiante, quando o próprio texto bíblico afirma: "o corpo está morto por causa do pecado" (Rm 8:10). Ou seja, a morte atribuída ao pecado é explicitamente aplicada ao corpo.
Dessa forma, trata-se de um argumento que praticamente colapsa por si mesmo, do mesmo modo que o anterior, ao ser confrontado com a definição bíblica do que, de fato, é declarado como morto em razão do pecado.
A Bíblia só fala de um juízo?
Este argumento é, pra mim, o mais ridículo. Afirmam que seria impossível a existência de um estado intermediário porque isso implicaria a existência de dois juízos. E, segundo eles, a Bíblia só falaria de um único juízo, o final.
Esse argumento é infantil justamente porque, além do juízo final, a Bíblia é clara em mostrar punições e atos de juízo anteriores ao grande Dia. Sodoma e Gomorra, por exemplo, foram punidas muito antes do juízo final (Gn 19:24–25), e Judas ainda afirma que servem de exemplo do juízo divino (Jd 1:7).
Os israelitas no deserto também sofreram juízo da parte de Deus, morrendo antes de entrar na terra prometida (Nm 14:29–35; 1Co 10:5–11). Ananias e Safira, da mesma forma, foram julgados e mortos imediatamente por mentirem ao Espírito Santo, sem qualquer relação com o juízo final (At 5:1–11).
Ora, até mesmo as taças da ira de Deus, descritas no Apocalipse, são juízos derramados antes do julgamento final diante do grande trono branco (Ap 16; Ap 20:11–15).
Portanto, todos esses casos são juízos reais e punitivos que ocorrem antes do juízo final, o que torna completamente artificial a objeção de que a existência de um estado intermediário criaria “dois juízos”. A Escritura jamais limitou o juízo divino a um único momento no fim dos tempos.
Mas, se esses exemplos de juízos antes do Juízo Final ainda não saciarem os críticos, algo semelhante à crença no estado intermediário dos ímpios pode ser observado no caso dos anjos. Em Pedro e Judas, mesmo ainda não tendo passado pelo Juízo Final, eles já se encontram sob punição, conforme o próprio texto declara:
"Porque Deus não poupou os anjos que pecaram, antes, precipitando-os no inferno (tártaro), entregou-os a abismos de trevas, reservando-os para juízo." (2 Pedro 2:4)
"E aos anjos que não guardaram o seu estado original, mas abandonaram o seu próprio domicílio, ele tem guardado sob trevas, em prisões eternas, para o juízo do grande Dia". (Judas 1:6)
A morte é comparada ao sono
Este argumento também é outro sem pé nem cabeça. Para eles, se a Bíblia usa a metáfora de "dormir" (Daniel 12:2; João 11:11–14; 1 Tessalonicenses 4:13–14)., então a morte seria necessariamente um estado de inconsciência. Quem recorre a esse argumento sequer para para pensar que até os mortos sonham (Jó 7:14).
Todavia, a metáfora do sono reside simplesmente no fato de que um morto se parece com alguém dormindo. Isso é algo que até uma criança percebe. O próprio texto bíblico deixa claro que se trata de linguagem figurada, usada para falar da aparência e da condição do corpo, e não para definir o estado de consciência da alma.
Sem ressurreição, os mortos estão perdidos?
"[16] Porque, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou; [17] E, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados; [18] E, também, os que dormiram em Cristo estão perdidos." (1 Coríntios 15:16-18 ARC)
Para muitos mortalistas, 1 Coríntios 15 é o verdadeiro "Exodia" nos debates. Para eles, basta colocar as cartas na mesa, ou melhor, citar o texto, e a discussão estaria encerrada, e o raciocínio oposto, "obliterado". O raciocínio é simples: se Paulo afirma que, sem a ressurreição, os mortos estão perdidos, então não pode existir uma alma imortal gozando de algum tipo de bem-aventurança após a morte. Do contrário, esses mortos não estariam realmente perdidos.
Sendo mais profundo no estudo, 1 Coríntios 15:18, a expressão, que acima é traduzido apenas por "e", é ἄρα καὶ (ara kai), que tem valor conclusivo e consecutivo, podendo ser traduzida como "logo também", "portanto também" ou "assim, igualmente". Ela indica que a afirmação seguinte é resultado direto do argumento anterior. No contexto, Paulo acabou de afirmar que, se Cristo não ressuscitou, os crentes ainda permanecem em seus pecados (1 Coríntios 15:17). Logo também (ara kai), aqueles que dormiram em Cristo estão perdidos, não porque estariam inconscientes ou aniquilados, mas porque, sem a ressurreição de Cristo, não haveria expiação eficaz, nem para vivos nem para mortos. A conclusão de Paulo é teológica e soteriológica, não antropológica.
Texto grego AQUI
No geral, o argumento mortalista é realmente "O Proibido": não porque seja definitivo, mas porque é jogado como uma carta final, reunindo cinco ou mais versículos fora de contexto na tentativa de encerrar o duelo teológico.
Também é importante deixar claro que eu, Roneilson, não considero estar morto algo melhor do que estar vivo. No meu entendimento, quando Filipenses 1:20–24 afirma que o "partir" seria melhor, isso está ligado principalmente ao fato de Cristo ser glorificado na morte de Paulo, como o próprio contexto declara ao dizer que Cristo seria engrandecido tanto pela vida quanto pela morte (Fp 1:20). Assim, o texto não ensina que a morte, em si mesma, seja uma condição superior à vida.
Da mesma forma, no relato do rico e Lázaro (Lucas 16:19–31), a condição de Lázaro após a morte é melhor em contraste com a do rico, que se encontra em tormento (Lc 16:23–25), e não em comparação com os vivos de forma geral. O contraste do texto não é entre vivos e mortos, mas entre justo e ímpio, bem como entre destinos distintos no juízo divino.
Assim, costumo seguir a compreensão judaica dos primeiros séculos. Nessa perspectiva, as almas dos mortos, tanto justos quanto ímpios, encontram-se no Sheol, em um estado de espera até o Dia determinado por Deus. Ainda que seja uma condição provisória e precária, ela não é idêntica para todos: uns permanecem em um estado de bem-aventurança e esperando o arrebatamento, enquanto outros se encontram em sofrimento, aguardando o desfecho final.
Assim, não vejo qualquer dificuldade na outra afirmação do versículo, segundo a qual, se não há ressurreição, então "comamos e bebamos, porque amanhã morreremos" (1 Coríntios 15:32). Essa conclusão é coerente com o próprio argumento de Paulo, que se relaciona com a lógica expressa em Isaías 22:13, mostrando que, sem a esperança da ressurreição, a vida se reduz a uma busca imediata por prazer, já que tudo terminaria de forma definitiva com a morte.
Não. A maioria dos mortalistas simplesmente não compreende o que lê. Na prática, quando se examina o texto bíblico com atenção, versículo por versículo, o que se percebe não é exegese, mas um esforço insistente (e por vezes ingênuo) de forçar a própria crença para dentro do texto sagrado, em vez de permitir que o texto fale por si mesmo.
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